JORGE LUIS BORGES (Buenos Aires, 24 de Agosto de 1899 — Genebra, 14 de Junho de 1986), o teu bisavô, Francisco Borges, era de Torre de Moncorvo, em Trás-os-Montes.
“Segundo a memória da família, o bisavô chegou ao Rio da Prata em 1817. 12 anos depois casou em Montevideu com uma argentina. Tiveram um filho, Francisco Borges Lafinur que casou com uma inglesa e também foi militar.”
Nada ou pouco sei dos meus ancestrais Portugueses, os Borges: vaga gente Que na minha carne, obscuramente, Prossegue seus hábitos, temores e rituais. Ténues como se nunca houvessem existido E alheios aos trâmites da arte, Indecifravelmente fazem parte Do tempo, da terra e do que é esquecido. Melhor assim. Cumprida a odisseia, São Portugal, são a famosa gente Que forçou as muralhas do Oriente E se deu ao mar e a outro mar de areia. São o rei que no místico deserto Se perdeu mas jura estar perto.
Uma rápida busca no google sobre Paulo Leminski (Curitiba, 24 de Agosto de 1944 — 7 de Junho de 1989) dá-nos a dimensão do poeta em Portugal: zero. Na numerologia é coisa grande, aqui, não creio. A mistura de cultura popular com erudição, o delírio existencial de extravagantes associações linguísticas, o culto do absurdo e da concisão zen, o humor, a ironia, o sentido lúdico da palavra e da própria vida não tem eco (ainda) por cá. Mas o seu passeio entre 60 e 80 — o facto de não ter chegado à era da internet, no seu caso, foi limitador — talvez mereça mais atenção.
Como os poetas concretos que tinham como preferência literária os ícones dos movimentos da vanguarda europeia do início do século 20 e como referência estética os artistas ligados ao movimento concreto da Alemanha (Ulm), Leminsky começou por assimilar essa informação estética e de criação poética. O concretismo foi, para ele, uma escola teórico-prática que pregava a invenção poética (Ezra Pound), a abolição do verso (Mallarmé), a linguagem do design (caligramas de Apollinaire, poesia de e. e. cummings), a ruptura da dicotomia entre forma e conteúdo e os neologismos (palavras-valises de Joyce e Carroll). Seguiu a teoria poundiana do ABC of Reading que identifica na linguagem poética a melopéia, a fanopéia e a logopéia, ao valorizar os elementos verbivocovisuais com uma temática talvez mais prosaica e com mais humor lírico-sensorial que a matriz importada.
Leminski declarava-se sartriano e uma das suas peculiaridades foi a capacidade de percepção sensorial e de síntese intelectual que ele expressa, principalmente, nos seus poemas curtos. Os aforismos e haicais leminskianos são verdadeiras provocações mentais e sensoriais.
UM DIA
a gente ia ser homero a obra nada menos que uma ilíada depois a barra pesando dava pra ser aí um rimbaud um ungaretti um fernando pessoa qualquer um lorca um éluard um ginsberg por fim acabamos o pequeno poeta de província que sempre fomos por trás de tantas máscaras que o tempo tratou como a flores
“Não pensamos todos os objectos da mesma maneira”. Definimos “três grandes tipos de objectos aos quais correspondem três maneiras de pensar distintas: os do domínio da natureza, os do campo da beleza e os do domínio da liberdade." Paulo Tunhas ainda fervilhava de ideias quando iniciou este projecto (faleceu demasiado cedo, o ano passado), que pode ser visto como preâmbulo de um outro volume que não chegou a escrever. A ideia era analisar o que e como é essa atividade (a filosofia), menos quem a faz. Por isso, omite os autores para mais desembaraçadamente discutir as ideias e nem os cita, deixando no ar um certo “ficcionalismo”. Afinal, as gavetas da filosofia podem não ser tão fechadas como geralmente as encontrámos. Talvez tudo tenha de ser visto com rigor académico, sim, mas fundamentalmente com uma interpretação aberta. Será a filosofia música? Um trabalho irritantemente interrompido.
Niels Lyhne (1880) é a história de um ateu e poeta desiludido com crenças e falsos consolos. A vida porá à prova os seus ideais, na relação com as mulheres, nas perdas trágicas e na voragem das expectativas sociais. Posfaciado por Claudio Magris, admirado Kafka, Thomas Mann e especialmente por Rilke — que em “Cartas a Um Jovem Poeta” refere este livro e a Bíblia como os únicos que vale a pena ler.
No quinto centenário do nascimento de Luís de Camões, uma antologia, selecionada e comentada por um dos seus grandes leitores (sem prosa, ao contrário do que fez Eugénio de Andrade na antologia de 1977) com referências literárias explicadas na última secção do livro. Curiosidade: não esconde como Camões foi, ao fim e ao cabo, imperialista, racista e outras coisas mal vistas. Frederico Lourenço destaca evidências disso no canto X dos “Lusíadas”, mas não é só lá que elas aparecem. Ainda não foi cancelado e Lourenço explica que não o deve - limita-se a refletir os conceitos do seu tempo. E que sobre determinados versos, conceitos ou metáforas que há décadas damos como seus, quando descobrimos que afinal foram colhidos em Virgílio ou Petrarca, calma, isso em nada diminui o seu mérito. Trata-se sempre de excelente poesia.
Eu, rapaz do sec. XX, biblioteca: 2500 livros, metade dos quais muito pouco recomendáveis. Giacomo Leopardi, rapaz do sec. XVIII, hoje de parabéns (29.06.1798 —14.06.1837), biblioteca: 25.000 absolutamente recomendáveis. Conclusão: só não sou um retrocesso civilizacional graças à medicina que me tem poupado à corcunda e outras maleitas. E nem o alívio existencial de Leopardi, o de olhar à janela, separando o mundo exterior (realidade) do mundo interior (fingimento), consigo imitar — vivo num "caixote" em frente a outros "caixotes". Mas Pessoa conseguiu-o. A sua Maria José e o seu Barão de Teive ficaram sempre à janela da Rua dos Douradores, de Bernardo Soares, com as suas dores. Isto não é, portanto, um pormenor, merece ser desenvolvido.
Giocomo Leopardi, Pensamentos, ed. Saguão, 2018
Fernando Pessoa percorre estes aspectos na Carta da corcunda para um serralheiro (Fernando Pessoa, Pessoa por conhecer vol.II, org. de Teresa Rita Lopes, Estampa, Lisboa 1990, p. 257). Maria José, a personalidade literária que Pessoa cria como sendo autora da carta, retoma a imagem do homem corcunda, que sofre de tuberculose e que passa a vida a ler e a olhar à janela. Tal como aquele, esta apaixona-se por uma pessoa que nunca chegou a conhecer e que só viu trabalhar através dos vidros da janela. Nessa carta, o nome de Leopardi nunca vem directamente citado, o nome do de Leopardi só aparece em alguns fragmentos críticos (Fernando Pessoa, Barão de Teive, A educação do estóico, org. de Richard Zenith, Assírio & Alvim, Lisbona 1999, pp. 65-74).
Quem explica isto muito bem, e as suas consequências, é Paolo Russo, no Pessoa e Leopardi, duas almas à janela, in Mealibra, n°19, Viana do Castelo 2006, pp. 13 – 18:
"Pessoa atribui a Leopardi e aos outros dois poetas a atitude romântica de serem incapazes de conceber a realidade como algo situado fora deles próprios, atribuindo essa atitude, no caso de Leopardi, à falta de relacionamento com o sexo oposto. Leopardi aparece pela última vez num poema que lhe é inteiramente dedicado: Canto a Leopardi (Fernando Pessoa, Obras de Fernando Pessoa vol. I, org. de António Quadros, Lello & Irmão, Porto 1984, p. 406. Mas além da ironia e dos aspectos biográficos, a presença leopardiana em Pessoa é bem sintetizada no semi-heterónimo Barão de Teive que, tal como Bernardo Soares, encara muitas facetas do próprio Pessoa. O Barão encara os aspectos mais intelectuais de Leopardi, mais especificamente retoma a atitude estóica que o poeta italiano adopta nos últimos anos da sua vida. O fidalgo criado por Pessoa pertence à aristocracia, tal como Leopardi (que era conde), e tal como ele encara a nobreza como um elemento de distinção em relação ao homem comum, que o Barão observa pela janela e que desperta nele pensamentos mais altos, recalcando a estrutura da maior parte dos Canti de Leopardi. O alívio existencial de olhar à janela, enfatizado em Maria José e no Barão, é uma constante de toda a obra de Pessoa: desde a janela em Rua dos Douradores de Bernardo Soares àquela dos poemas de Álvaro de Campos; tal como em Leopardi, a janela é o elemento de separação/ligação com o mundo exterior e o mundo interior, confim entre realidade e fingimento, instrumento necessário à poesia."
Leopardi foi uma voz daquele desassossego romântico que Pessoa modernizou, embora o nosso poeta tenha preferido criar "outros" que pudessem sofrer no seu lugar.
"Imprimi-se muito e nada se lê" é um dos pensamentos de Giacomo Leopardi mais actuais.
“A sabedoria económica deste século pode medir-se pelas chamadas edições compactas, em que é pouco o gasto de papel e infinito o da vista. Embora se defenda a poupança de papel nos livros, pode alegar-se que o costume do século é imprimir-se muito e nada se ler. Desse costume faz também parte o abandono dos caracteres redondos, utilizados comummente por toda a Europa nos séculos passados, e a sua substituição pelos caracteres longos, a que se adiciona o brilho do papel; coisas tão belas de se ver quanto nocivas para os olhos na leitura, mas bem razoáveis num tempo em que os livros são impressos para serem vistos e não para serem lidos.”
Giacomo Leopardi, Pensamentos, edição bilingue, tradução de Andrea Ragusa e Ana Cláudia Santos, Edições do Saguão, 2018, p. 19, 500 exemplares.
O melhor retrato que de Luigi Pirandello se pode apresentar é o que ele próprio de si traçou. Foi encontrado entre os vários papéis do seu espólio, num conjunto de folhas soltas dactilografadas, sem que seja possível datar a sua redacção com segurança.
"Não gosto de falar nas costas de ninguém e por isso, agora que prevejo que a minha partida esteja próxima, vou dizer a todos, cara a cara, as informações que darei se noutro lugar me forem pedidas notícias acerca desta minha involuntária estadia à face da terra, onde numa noite de Junho caí como um pirilampo, por baixo de um grande pinheiro solitário, num campo de oliveiras sarracenas que fica na borda de um planalto de argila azul, debruçado sobre o mar africano. sabe-se, os pirilampos, como são. a noite, a sua escuridão, parece que a faça para eles que, voando não se sabe por onde, ora para aqui, ora para acolá, abrem por um momento aquele seu lânguido jorro de luz verde. de vez em quando, cai um e vê-se e não se vê aquele seu verde suspiro de luz na terra que parece perdidamente longe. assim caí eu ali naquela noite de Junho, quando tantos outros pirilampos amarelos entreluziam numa colina onde havia uma cidade que, naquele ano, sofria de uma grande mortandade. com o susto que apanhou por causa dessa grande calamidade, minha mãe trazia-me ao mundo antes do tempo previsto, naquela solitária e longínqua aldeia onde se tinha refugiado. um dos meus tios ia por aqueles campos com uma lanterna na mão à procura de uma mulher que ajudasse minha mãe a pôr-me no mundo. mas minha mãe já se tinha ajudado por si própria e eu nasci antes de o meu tio regressar com a mulher. tirado do campo, o meu nascimento foi registado na pequena cidade situada na colina. entre as tantas pessoas que naquele ano diariamente morriam, um que nascia era como uma reaparição à qual era dada tanto mais importância, quanto mais era insignificante e mesquinha. penso, porém, que era coisa certa para os outros, que devia nascer ali e não noutro sítio e que não podia nascer nem antes nem depois, mas confesso que acerca de todas estas coisas não tenho uma ideia precisa, nem tão pouco espero vir a tê-la. minha mãe, que entre vivos e mortos, meninos e meninas, deu ao mundo nove filhos, nem ela nunca teve a certeza de que, para além da longa pena de os trazer dentro de si e das dores do parto, neles tivesse posto algo mais para lhes dar vida. sabia bem que a vida, quem a dá e como a dá no habitual acto de procriação, é um mistério impenetrável ao qual tinha ficado alheia, apesar de nele ter participado cegamente. amou sempre as suas criaturas, mesmo quando, sem o poder sentir, compreendeu que já não lhe pertenciam, e ficou como se fosse uma dessas criaturas, também ela uma criança, mas que perdeu algo para sempre e guardou a dor de apenas pertencer a si própria. Porque cada um, a certo ponto, sai do mistério do seu nascimento natural que ainda dura algum tempo depois de se nascer e, perante a incerteza de tudo, começa a nascer sozinho, para si próprio, e a formar, conforme pode, a própria vida, só: daquela solidão da qual se tem uma terrível consciência quando se está prestes a morrer.
ora, eu não direi nada acerca da minha vida que, tal como a de qualquer outro, não tenha nenhuma importância, pelo menos do ponto de vista a partir do qual a quis olhar. de resto, já nem a vejo. existe, enfim, com toda a terra, como se não fosse nada. será esta a razão pela qual não poderei dar qualquer informação acerca dela. mal me liberte de toda a ilusão dos sentidos, serei como aquele indelével salpico imprevisto no qual se extingue uma bola de sabão. Luz e cor, movimento. tudo será como nada. e silêncio."
"Vida, e vida presa, e apenas por um fio, é coisa que toda a gente tem. Embora nem toda a gente saiba que tem, ou dê por isso. Nem toda a gente está cá para o efeito. Dar por isso não deixa de ser, não obstante, a melhor das razões para cá se estar. E não há assim tantas." (Um Fio Que Te Prende À Vida, p.5).
E foi do que sempre tratou Rui Caeiro (Vila Viçosa, 27 de Junho de 1943 - Oeiras, 29 de Janeiro de 2019): dessa consciência de transitoriedade e de precariedade.
Na sua escrita "não poetiza os lugares, nem congela o poema numa cartografia estreita. Os espaços têm, pelo contrário, o dom da necessidade, como se emanassem de qualquer destino que os implicasse, como uma artéria no corpo, na constituição da própria escrita" (Hugo Pinto Santos). O poeta "não só não tinha como desprezava os enlevos por ´beldades mortas e pianos tuberculosos´. Mas apreciava as "eternas dúvidas", essas inquietações que lançam um pano sobre o espírito, lhe denunciam as formas, e nos tornam sujeitos em comum, implorando do caos a clemência de um sentido qualquer, por mais mísero que seja" (Diogo Vaz Pinto). Talvez em melhor síntese, "Rui Caeiro age como um fabulista clássico com um toque minimalista" (José Ángel Cilleruelo). Ao longo de trinta anos de publicação, fez do seu modo de ser discreto e sóbrio uma prática literária, oferecendo a parte maior da sua obra em edições de autor ou em editoras independentes. Tradutor e poeta, estreou-se tardiamente (Deus, sobre o magno problema da existência de Deus, 1988). Nunca teve prémios. "Alguns há para quem as despedidas podem ser ao mesmo tempo banais, sem história e difíceis ainda assim", anotou Rui Caeiro, no seu Acabamentos de primeira (Edições Eclusa).
No seu derradeiro livro, um duplo, Diálogos Marados / Um Maluco Vem Pousar-me na Mão, da Livraria Snob, deixou-nos um "best-of" de coisas ouvidas, anedotas; uma espécie de balanço.
Entrevista rara do aniversariante do dia, João Guimarães Rosa (Cordisburgo, 27 de junho de 1908 — Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1967), com Walter Höllerer para um canal de televisão independente em Berlim, onde foi embaixador, em 1962. São as únicas imagens em movimento do escritor, retiradas do documentário Outro Sertão(2013), que eu saiba ainda impossível de encontrar no mercado português.GuimarãesRosa apresenta o livro Grande Sertão: Veredas e também o de contos, Primeiras Estórias.
Refira-se que a obra-prima de 1956, Grande Sertão: Veredas, tem agora uma primeira edição portuguesa (Companhia das Letras, 2019). Para alguns, o vocabulário funcionará como uma barreira, “urco” (corpulento), “sonoite” (lusco-fusco), “reconditório” (esconderijo), “nanzuque” (tecido fino de algodão), “alpondras” (pedras dispostas de forma a atravessar correntes de água a pé enxuto), “cuquiada” (vozes de alarme), “cacundeiro” (moço de fretes), “zureta” (amalucado), “espingolado” (alto e magro), “jegues” (burros, jumentos), “bruega” (chuvisco). Não se trata de virtuosismo gratuito, mas encontrar as palavras justas no continente linguístico luso-brasileiro. Ou perceber melhor João Guimarães Rosa quando dizia que não era um “revolucionário da língua” mas um “reaccionário da língua”. Se a linguagem é a primeira fronteira deste romance, a paisagem é a segunda. Vasto espaço selvagem, o termo “sertão” designa um sítio concreto, com bichos e vegetação, deslumbres e perigos,: “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera”, diz o narrador, Riobaldo, que também avisa que “o sertão está em toda a parte”, que o sertão é “dentro da gente”. A terceira fronteira do romance é a fronteira entre amor e amizade, masculino e feminino, e “amor mesmo amor, mal encoberto em amizade”. Riobaldo tem um amigo, Reinaldo, que trata por Diadorim. E gosta dele, um gostar “aumentado”: “Tudo estava perfeito tranquilo. Diadorim — com chapéu xíspeto, alteado. Nele o nenhum negar: no firme do nuto, nas curvas da boca, em o rir dos olhos, na fina cintura; e em peito a torta-cruz das cartucheiras”. Inquieto, Riobaldo pergunta: “Mas, dois guerreiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação —por detrás de tantos brios e armas?” Enfim, as fronteiras, as fronteiras de tudo e de todos são ténues, movediças.
“A vida da gente vai em êrros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria”.
Exemplar de uma 1º edição de Os Maias, propriedade da Livraria Lello
Há 133 anos, a Livraria Chardron publicava a primeira edição do livro Os Maias de Eça de Queirós. De então para cá, nas caves mais profundas do nossos sucessivos Ministérios da Cultura discute-se como falar dele nas aulas de Português. Ocorreu-lhes, muito recentemente, até não falar dele. O país emocionou-se e disse não, mas era a melhor opção. Como é que se pode ler Os Maias por leituras de excertos e perceber, desde logo, o título? Será uma referência ao apelido da família cuja história vamos acompanhar ou uma alegoria à civilização Maia que, tal como a nossa, a portuguesa, teve o seu apogeu e desapareceu? Podemos ler algumas páginas deste livro com um português exigente e com uma estratégia contínua de analepse e prolepse e perceber que aquela família é Portugal, que Afonso da Maia é o Portugal de 1820, Pedro, o Portugal de 1850 e Carlos, o Portugal de 1870? Podemos, pela a leitura de excertos, perceber que o tema é o incesto e não o adultério? Temos professores e escolas para dar a perceber ao aluno que o Eça fez uma extraordinária alegoria sobre os portugueses e não sobre uma família e uma análise profunda às causas da decadência do nosso país segundo o meio, raça e o momento? Não, claro que não. Então, desistamos!
Entretanto, e enquanto não concordamos, caro Leitor (com maiúscula), meditemos neste final aberto que muito me intriga. É uma graça sem sentido, uma esperança ou a conclusão do Eça que o português das tragédias familiares, nacionais e outros problemas tudo reduz a cinzas?
"Espera! - exclamou Ega - Lá vem um «americano», ainda o apanhamos. — Ainda o apanhamos! Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face: — Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma... Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras: — Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder... A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço: — Ainda o apanhamos! — Ainda o apanhamos!"