sexta-feira, junho 28

Nada e silêncio

O melhor retrato que de Luigi Pirandello se pode apresentar é o que ele próprio de si traçou. Foi encontrado entre os vários papéis do seu espólio, num conjunto de folhas soltas dactilografadas, sem que seja possível datar a sua redacção com segurança.

"Não gosto de falar nas costas de ninguém e por isso, agora que prevejo que a minha partida esteja próxima, vou dizer a todos, cara a cara, as informações que darei se noutro lugar me forem pedidas notícias acerca desta minha involuntária estadia à face da terra, onde numa noite de Junho caí como um pirilampo, por baixo de um grande pinheiro solitário, num campo de oliveiras sarracenas que fica na borda de um planalto de argila azul, debruçado sobre o mar africano. sabe-se, os pirilampos, como são. a noite, a sua escuridão, parece que a faça para eles que, voando não se sabe por onde, ora para aqui, ora para acolá, abrem por um momento aquele seu lânguido jorro de luz verde. de vez em quando, cai um e vê-se e não se vê aquele seu verde suspiro de luz na terra que parece perdidamente longe. assim caí eu ali naquela noite de Junho, quando tantos outros pirilampos amarelos entreluziam numa colina onde havia uma cidade que, naquele ano, sofria de uma grande mortandade. com o susto que apanhou por causa dessa grande calamidade, minha mãe trazia-me ao mundo antes do tempo previsto, naquela solitária e longínqua aldeia onde se tinha refugiado. um dos meus tios ia por aqueles campos com uma lanterna na mão à procura de uma mulher que ajudasse minha mãe a pôr-me no mundo. mas minha mãe já se tinha ajudado por si própria e eu nasci antes de o meu tio regressar com a mulher. tirado do campo, o meu nascimento foi registado na pequena cidade situada na colina. entre as tantas pessoas que naquele ano diariamente morriam, um que nascia era como uma reaparição à qual era dada tanto mais importância, quanto mais era insignificante e mesquinha. penso, porém, que era coisa certa para os outros, que devia nascer ali e não noutro sítio e que não podia nascer nem antes nem depois, mas confesso que acerca de todas estas coisas não tenho uma ideia precisa, nem tão pouco espero vir a tê-la. minha mãe, que entre vivos e mortos, meninos e meninas, deu ao mundo nove filhos, nem ela nunca teve a certeza de que, para além da longa pena de os trazer dentro de si e das dores do parto, neles tivesse posto algo mais para lhes dar vida. sabia bem que a vida, quem a dá e como a dá no habitual acto de procriação, é um mistério impenetrável ao qual tinha ficado alheia, apesar de nele ter participado cegamente. amou sempre as suas criaturas, mesmo quando, sem o poder sentir, compreendeu que já não lhe pertenciam, e ficou como se fosse uma dessas criaturas, também ela uma criança, mas que perdeu algo para sempre e guardou a dor de apenas pertencer a si própria. Porque cada um, a certo ponto, sai do mistério do seu nascimento natural que ainda dura algum tempo depois de se nascer e, perante a incerteza de tudo, começa a nascer sozinho, para si próprio, e a formar, conforme pode, a própria vida, só: daquela solidão da qual se tem uma terrível consciência quando se está prestes a morrer. ora, eu não direi nada acerca da minha vida que, tal como a de qualquer outro, não tenha nenhuma importância, pelo menos do ponto de vista a partir do qual a quis olhar. de resto, já nem a vejo. existe, enfim, com toda a terra, como se não fosse nada. será esta a razão pela qual não poderei dar qualquer informação acerca dela. mal me liberte de toda a ilusão dos sentidos, serei como aquele indelével salpico imprevisto no qual se extingue uma bola de sabão. Luz e cor, movimento. tudo será como nada. e silêncio."
Luigi Pirandello, "Informazioni sul mio involontario soggiorno sulla terra, Saggi, poesie, scritti varii", pp. 1105-1106, in Luigi Pirandello e a recepção da sua obra em Portugal.

Sem comentários:

Enviar um comentário