terça-feira, janeiro 4

Oliveira e Agustina: memórias e confissões


Agustina com Oliveira na casa da escritora, em 1996
(Foto: Alfredo Cunha)
EXPOSIÇÃO CCMO
O Princípio da Incerteza. Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís
Porto. Casa do Cinema Manoel de Oliveira. Até 5 de Junho de 2022

“Agustina gosta de não gostar dos meus filmes. Mas eu gosto que ela não goste.” A afirmação de Manoel de Oliveira (1908-2015) na apresentação de "O Espelho Mágico" no Festival de Veneza, em 2005, sintetiza bem aquilo que foi a parceria, ao mesmo tempo criativa e conflituosa, entre o realizador e a escritora ao longo de duas décadas e meia e de nove filmes. Foram inúmeros os desencontros e os remoques cruzados entre ambos, desde que em 1981 Oliveira adaptou Fanny Owen para dele fazer Francisca.

Neste início de ano, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira (CCMO) oferece-nos uma imperdível viagem à colaboração entre os dois. A relação sempre tensa e essencial está logo expressa na seleção de ditos e citações que recebem o visitante no átrio e no final do percurso pela longa conversa entre os dois autores que o italiano Daniele Segre gravou no Porto, em Dezembro de 2005.

O Princípio da Incerteza”, nome da trilogia de Agustina com os romances "Joia de Família" (2001), "A Alma dos Ricos" (2002) e "Os Espaços em Branco" (2003), mas também o termo para o famoso princípio da física quântica de Werner Heisenberg que considera, na sua indeterminação fundamental, a relação entre estes dois eletrões livres, é a viagem em dez etapas, tantas quantas as obras a que a escritora emprestou a sua palavra: cinco romances, dois diálogos, uma peça de teatro, um conto e um discurso, seguindo a enumeração e o roteiro que António Preto regista no catálogo que acompanha a exposição. 

Agustina recebe-nos no “Porto da Minha Infância” (2001), a sua única aparição frente às câmaras do realizador para dissertar sobre o poder da mulher, muitas vezes considerado reacionário na maneira como retratava a condição feminina. 

Seguimos para “Francisca” (1981) o filme que marca o início de uma parceria que haveria de prolongar-se por duas décadas e meia. Um encontro bem documentado na vitrina que dá a ver vários documentos do amor funesto de Fanny Owen e José Augusto Pinto de Magalhães, que comoveu o Porto burguês do século XIX, nomeadamente uma a pasta com os diários do casal, com anotações de… Camilo Castelo Branco cuja implicação no desfecho trágico daquele romance ainda se discute sem consenso. 

Para “Visita ou Memórias e Confissões”, filme que Oliveira realizou em 1982, mas determinou que só seria estreado após a sua morte, Agustina escreveu “A Casa”, texto da visita em voz off à Casa da Vilarinha, do realizador, pelo casal interpretado por Teresa Madruga e Diogo Dória. 

Numa rara incursão no teatro, “De Profundis” (1987) resulta também de um texto de Agustina para a peça que Oliveira encenou para o Festival de Santo Arcangelo, em Itália, sobre um homem que cai num poço – também uma metáfora da situação que o próprio realizador então vivia, depois de ter perdido a sua casa e da má recepção que, desde “Amor de Perdição” (1979), os seus filmes iam registando dentro de portas. 

"Vale Abraão" (1993) – a Madame Bovary, de Flaubert, adaptada a pedido do realizador ao contexto português – é reconhecidamente o ponto mais alto da colaboração dos dois, e uma das histórias mais bem documentadas na exposição, recordando-nos que Flaubert chegou a assumir que a sua Madame Bovary era ele próprio e a Ema, de Agustina, diz: “Eu sou um homem”... 

Um píton, emprestado pelo Zoo da Maia, numa jaula enquadrada pela fotografia de uma floresta jurássica representa a força subterrânea e corruptiva do desejo e da sedução que pode definir “O Convento” (1995), filme que deveria, para a escritora, ter-se chamado “Pedra de Toque”, mas uma sucessão de desentendimentos levou a que cada um virasse as costas ao outro, daí resultando um filme com “argumento, diálogos e realização de Manoel de Oliveira, inspirado numa ideia original de Agustina Bessa-Luís”. Agustina acabou por dar ao livro o título “As Terras do Risco” (1994). 

Este desencontro seria, de algum modo, reparado com “Party” (1996) - para muitos uma segunda versão de “O Convento” onde o diálogo socrático sobre o amor e desejo desta vez respeita integralmente os diálogos escritos pela amiga escritora. 

A vitrina a seguir convoca a ciência, a mecânica mágica da Fonte de Heron, para representar o movimento perpétuo da água como símbolo do conhecimento, convocando-nos para “Inquietude” (1998), uma montagem de três contos, um dos quais, “Mãe de um Rio”, integrou o livro de Agustina “A Brusca” (1971). A atriz grega Irene Papas é aqui essa “mãe” de águas profundas, lugar da escrita e do conhecimento. 

A sequência final da exposição associa “O Princípio da Incerteza” (2002) e “Espelho Mágico” (2002), os dois filmes que Oliveira realizou a partir da citada trilogia de Agustina. O primeiro teve como pretexto o mediático caso do crime na discoteca Meia Culpa, em Amarante, mas ambos os filmes têm a particularidade de incluírem entre os atores protagonistas os netos de Oliveira e Agustina, respetivamente Ricardo Trêpa (Touro Azul, alter ego do realizador) e Leonor Baldaque (Camila, alter ego da escritora) – uma forma de ambos se projetarem na ficção. 

Neste jogo de espelhos, uma última chamada de atenção para a dedicatória que Agustina escreveu em 2006 para Oliveira, naquele que seria o seu último romance, “A Ronda da Noite” : 
“Para o Manoel de Oliveira, com má letra [a saúde já não era a melhor] e boas intenções”.

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