EXPOSIÇÃO CCMOO Princípio da Incerteza. Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luís
Porto. Casa do Cinema Manoel de Oliveira. Até 5 de Junho de 2022
Neste início de ano, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira (CCMO) oferece-nos uma imperdível viagem à colaboração entre os dois. A relação sempre tensa e essencial está logo expressa na seleção de ditos e citações que recebem o visitante no átrio e no final do percurso pela longa conversa entre os dois autores que o italiano Daniele Segre gravou no Porto, em Dezembro de 2005.
“O Princípio da Incerteza”, nome da trilogia de Agustina com os romances "Joia de Família" (2001), "A Alma dos Ricos" (2002) e "Os Espaços em Branco" (2003), mas também o termo para o famoso princípio da física quântica de Werner Heisenberg que considera, na sua indeterminação fundamental, a relação entre estes dois eletrões livres, é a viagem em dez etapas, tantas quantas as obras a que a escritora emprestou a sua palavra: cinco romances, dois diálogos, uma peça de teatro, um conto e um discurso, seguindo a enumeração e o roteiro que António Preto regista no catálogo que acompanha a exposição.
Agustina recebe-nos no “Porto da Minha Infância” (2001), a sua única aparição frente às câmaras do realizador para dissertar sobre o poder da mulher, muitas vezes considerado reacionário na maneira como retratava a condição feminina.
Seguimos para “Francisca” (1981) o filme que marca o início de uma parceria que haveria de prolongar-se por duas décadas e meia. Um encontro bem documentado na vitrina que dá a ver vários documentos do amor funesto de Fanny Owen e José Augusto Pinto de Magalhães, que comoveu o Porto burguês do século XIX, nomeadamente uma a pasta com os diários do casal, com anotações de… Camilo Castelo Branco cuja implicação no desfecho trágico daquele romance ainda se discute sem consenso.
Para “Visita ou Memórias e Confissões”, filme que Oliveira realizou em 1982, mas determinou que só seria estreado após a sua morte, Agustina escreveu “A Casa”, texto da visita em voz off à Casa da Vilarinha, do realizador, pelo casal interpretado por Teresa Madruga e Diogo Dória.
Numa rara incursão no teatro, “De Profundis” (1987) resulta também de um texto de Agustina para a peça que Oliveira encenou para o Festival de Santo Arcangelo, em Itália, sobre um homem que cai num poço – também uma metáfora da situação que o próprio realizador então vivia, depois de ter perdido a sua casa e da má recepção que, desde “Amor de Perdição” (1979), os seus filmes iam registando dentro de portas.
"Vale Abraão" (1993) – a Madame Bovary, de Flaubert, adaptada a pedido do realizador ao contexto português – é reconhecidamente o ponto mais alto da colaboração dos dois, e uma das histórias mais bem documentadas na exposição, recordando-nos que Flaubert chegou a assumir que a sua Madame Bovary era ele próprio e a Ema, de Agustina, diz: “Eu sou um homem”...
Um píton, emprestado pelo Zoo da Maia, numa jaula enquadrada pela fotografia de uma floresta jurássica representa a força subterrânea e corruptiva do desejo e da sedução que pode definir “O Convento” (1995), filme que deveria, para a escritora, ter-se chamado “Pedra de Toque”, mas uma sucessão de desentendimentos levou a que cada um virasse as costas ao outro, daí resultando um filme com “argumento, diálogos e realização de Manoel de Oliveira, inspirado numa ideia original de Agustina Bessa-Luís”. Agustina acabou por dar ao livro o título “As Terras do Risco” (1994).
Este desencontro seria, de algum modo, reparado com “Party” (1996) - para muitos uma segunda versão de “O Convento” onde o diálogo socrático sobre o amor e desejo desta vez respeita integralmente os diálogos escritos pela amiga escritora.
A vitrina a seguir convoca a ciência, a mecânica mágica da Fonte de Heron, para representar o movimento perpétuo da água como símbolo do conhecimento, convocando-nos para “Inquietude” (1998), uma montagem de três contos, um dos quais, “Mãe de um Rio”, integrou o livro de Agustina “A Brusca” (1971). A atriz grega Irene Papas é aqui essa “mãe” de águas profundas, lugar da escrita e do conhecimento.
A sequência final da exposição associa “O Princípio da Incerteza” (2002) e “Espelho Mágico” (2002), os dois filmes que Oliveira realizou a partir da citada trilogia de Agustina. O primeiro teve como pretexto o mediático caso do crime na discoteca Meia Culpa, em Amarante, mas ambos os filmes têm a particularidade de incluírem entre os atores protagonistas os netos de Oliveira e Agustina, respetivamente Ricardo Trêpa (Touro Azul, alter ego do realizador) e Leonor Baldaque (Camila, alter ego da escritora) – uma forma de ambos se projetarem na ficção.
Neste jogo de espelhos, uma última chamada de atenção para a dedicatória que Agustina escreveu em 2006 para Oliveira, naquele que seria o seu último romance, “A Ronda da Noite” :
“Para o Manoel de Oliveira, com má letra [a saúde já não era a melhor] e boas intenções”.
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