Vitorino Nemésio tinha razão quando afirmou que "a extraordinária influência de que Almeida Garrett [Porto, 4 de fevereiro de 1799 — Lisboa, 9 de dezembro de 1854] gozou na sociedade portuguesa não é, como hoje somos tentados livrescamente a julgar, um puro magistério literário - é uma irradiação de toda a sua pessoa e um resultado calculado pelos propósitos de educador, de interventor público na política e na estética". Há motivos para isso.
Fixemo-nos em 1843, quando Garrett escreveu Frei Luís de Sousa. Num texto que escreveu ("Memória") para explicar o seu drama, Garrett afirmou ter criado uma peça para colocar em palco os actos e sentimentos de «gente boa e temente a Deus», mas como na tragédia antiga pudesse «excitar fortemente o terror e a piedade». Toda a acção de Frei Luís de Sousa fala da destruição de uma família virtuosa e de perto ligada com o desastre português nos finais do século XVI, ainda na memória de Alcácer-Quibir. As personagens centrais (Madalena, Maria, Telmo, Manuel de Sousa Coutinho e D. João de Portugal) debatem-se num conflito que ainda é de hoje, ou seja, o sentimento da perda do marido, uma nova paixão amorosa em que Madalena se envolve, o amor e a vergonha de Maria, a fidelidade de Telmo, o velho aio, e sobretudo a figura do Romeiro, ou a de D. João de Portugal, que Madalena julgou tivesse morrido na batalha de Quibir e regressa talvez para acordar os remorsos de sua Mulher ou despertar a consciência de quem não colocou a hipótese de que estivesse vivo. Mas, por entre pressentimentos e inquietações, dividida entre o passado e o presente, torturada pelas culpas de amor que Manuel de Sousa Coutinho lhe despertou, a tensão dramática agudiza-se até ao terceiro e último acto num desfecho surpreendente.
Garret sempre orientou a sua atitude literária no sentido de que «a coerência política é de princípios e não de pessoas». Disso é superior exemplo a sua actividade cívica, política e cultural que em tempo de conturbados sobressaltos e descréditos se empenhou e de modo irremediável declarando um dia «os poetas se fizeram cidadãos, tomaram parte na coisa pública como sua» sem deixar de entender que a solidão do escritor ou do poeta era a sua própria couraça, a muralha em que se devia fechar para construir a expressiva obra que nos legou.
É por isso se entende bem o silêncio final de Frei Luís de Sousa, corolário das próprias esperanças e desilusões de um Garrett, que sabia não ter consequência e adivinhava-se já sem seguidores. Assim se diz adeus ao mundo e se brinda à clausura de todo o reino. Tudo muito actual. Parabéns, "Janota"!
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![]() Retrato de Almeida Garrett, por Pedro Augusto Guglielmi |
QUANTOS POBRES CUSTA UM RICO?
“Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazei caminhos-de-ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. — No fundo de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas de dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? — Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito (*), já deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender ao Diabo, o número de corpos que se têm de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel (**), um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro — seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.”
— João Baptista da Silva Leitão de ALMEIDA GARRETT (Porto, 4 de Fevereiro de 1799 — Lisboa, 9 de Dezembro de 1854), escritor, dramaturgo, orador, par do reino e ministro, in “Viagens na Minha Terra“, 1846.
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