terça-feira, dezembro 1

Eduardo Lourenço (1923 – 2020)


Eduardo Lourenço morreu aos 97 anos e era, segundo o amigo e filósofo José Gil, mais divertido do que os seus ensaios, livros e opiniões faziam crer. Escreveu em O Labirinto da Saudade o seu Magnus Opum e, fundamentalmente, deixou claro uma grande evidencia: que os portugueses não convivem entre si, apenas espiam-se e controlam-se mutuamente.

Testemunhos apanhados aqui e ali:

José Gil (professor de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa): 
“Eduardo Lourenço analisa o que chama ‘Portugal como Destino’: a convicção do destino como imagem que um povo tem dele próprio num futuro simbolicamente eterno. Numa obra repleta de “picos de originalidade”, “ele insuflou na atmosfera portuguesa uma visão que não era religiosa, nem ideológica nem partidária, mas de outro tipo. Há fenómenos que mostram isso, como o facto de todos se sentirem seus amigos. Bastava um contacto ligeiro e passava-se qualquer coisa de uma outra ordem. É um laço social mais elevado, um catalisador. As pessoas sentem-se tocadas por ele.” 


José Pedro Serra (professor em Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa): 
“Ele sublinha que, antigamente, a tragédia ainda era abordável pela linguagem. A sua formulação era credível — acreditava-se nela. Na era contemporânea, a tragédia surge como um discurso impotente, atira-nos para um silêncio carregado. A imagem de Eduardo Lourenço é o manto do Rei Lear, que antes era imponente e hoje está dilacerado. A linguagem parece ter perdido a capacidade comunicativa, e esta é uma visão aguda da história do século XX. A mesma linguagem que foi iluminada pelo próprio Eduardo Lourenço, pelo “cuidado amoroso” com que erguia a arquitetura do discurso. A palavra era o lugar da sua habitação, o rio de sangue para onde corria a sua alma.” 

Viriato Soromenho-Marques (docente de Filosofia Política na Universidade de Lisboa) : 
“Eduardo Lourenço situa-se na aceitação de que não há substitutos para a morte de Deus. O pensamento tem de existir numa condição trágica, de incompletude. Esta lucidez e honestidade são o seu legado pessoal. Foi dos raros intelectuais portugueses de formação católica que, sendo leitor de Nietzsche e de Hegel, se aperceberam de “um mundo sem Deus enquanto força que condiciona as nossas ações”. Ele apanha a relação complicada de Portugal com a modernidade e compreende que a nossa visão histórica é feita de amnésia. Recusou usar a grandeza do passado para olhar o presente Percebe que o Estado Novo e Salazar estão profundamente enraizados na nossa cultura e não são uma importação externa. Deixa-nos uma exigência de pensar a nossa história a partir das dinâmicas internas; e uma ideia de identidade que pressupõe continuação, um olhar não rememorativo que olha em frente.” 

Maria Filomena Molder (filosofa): 
“Fiquei em dívida com o impacto que as “Heterodoxias” de Eduardo Lourenço tive na sua formação ao ponto de sempre ter querido escrever sobre isso. Não ter recebido herança, ter-se convertido num deserdado por decisão própria é uma das forças maiores deste pensador; ela manteve-se íntegra, atravessando anos e formulações, auscultando sinais, interpretando-os, interpelando-os. Ele prestou contas da tradição filosófica que aprendeu e fez sua, do que encontrou no seu país, o que herdou como português. Há um trabalho prévio a fazer: pensar por si próprio o homem, o que o obriga a destacar-se do que recebeu e a abrir um caminho que não está traçado: a renúncia a qualquer recado, a qualquer mandato. É um final. Ficamos órfãos da ‘voz que nos ensaia’, que ele atribuiu a Montaigne, aquela voz que, segundo ele, não foi escutada na aventura espiritual portuguesa. Em Eduardo Lourenço, ouço ainda essa voz que nos ensaia, a voz de ‘quem navega em pânico, mas também sem socorro celeste, entre céu e terra’. E isso é um exemplo”.

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