sexta-feira, abril 28

O apocalipse segundo Kraus


Em Viena, na viragem do século XIX para o século XX, Karl Kraus (Jičín, 28 de abril de 1874 - Viena, 12 de junho de 1936), “o maior satirista de língua alemã” (assim lhe chamou Elias Canetti), montou um tribunal apocalíptico para o fim do mundo. Atravessou o meio artístico, literário e intelectual da cidade movido a processos judiciais que lhe aumentaram, afinal, a fama. A acção de polemista foi tão empenhada que vai de 1899 — ano em que funda a revista Die Fackel (A Tocha) — até morrer, em junho de 1936. Novecentos e vinte e dois números! O primeiro alvo da sua ferocidade foi a imprensa.“Os jornalistas escrevem porque não têm nada a dizer, e têm algo a dizer porque escrevem”, escreveu. O jornalismo é visto como um lugar de onde desapareceu a responsabilidade fundamental do homem em relação à linguagem. Ninguém foi poupado neste apocalipse, mas Krauss também tinha dias bons. Às vezes, sentia algo como um esboço de amor à Humanidade. O sol sorria-lhe, o mundo voltava a ser novo e se nesse dia alguém lhe fosse pedir lume, seria capaz de não se fazer muito rogado e dar-lho. Das suas apreciações literárias estimo em particular esta:
"Este autor é tão profundo que eu, enquanto leitor, levei muito tempo para lhe descobrir a superfície."
Karl Kraus, Aforismos, VS, 2018, p. 294

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Estes aforismo também não me parecem nem maus nem datados:

“Não é suficiente para a necessidade de solidão estar sentado a uma mesa sozinho. Tem, igualmente, de haver cadeiras vazias à volta. Quando um empregado de mesa me tira uma cadeira dessas, onde ninguém está sentado, sinto um vazio e em mim desperta o meu temperamento sociável. Não consigo viver sem cadeiras livres.” (p. 178)


“A arte má e a má vida revelam-se de uma identidade assustadora. Aquela fita-nos embasbacada com a imobilidade daquelas diletantices que hoje são tão procuradas nos jornais humorísticos e na opereta, uma vez que facilitam a agnosticização da vida. Caras como sobremesas solidificadas que estão sempre à mão de semear e que se nos oferecem na sequência inalterável de pudim “flan”, leite-creme, “molotof”, doce da avó e baba de camelo. Cavalos de corrida que parecem fugidos de um carrossel. Automóveis à velocidade alucinante da avaria. Peões que não têm chão debaixo dos pés. Balões que não sobem, pedras que não caem. Uma vida que fornece imagens vivas, estando de tal maneira preparada para o fotógrafo que não iria reconhecer-se na arte, considerando como artista apenas o diletante que lhe colora a identidade. E então também se verificou que este exprime a cultura da sua zona com mais pujança do que o artista que converte a miséria desta em prazer. E o efeito desta Humanidade feita de porteiros, soldados de infantaria e funcionários municipais, sacada directamente da cama para o espaço sideral, é tão avassalador que, juntamente com a duplicação de toda essa vida, também duplica o aborrecimento com a vida.” (p. 179) 

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