quinta-feira, março 16

Um amor de perdição

Camilo Castelo Branco, em 1882

Não há, na vasta bibliografia de Camilo Castelo Branco (Mártires, Lisboa, 16 de Março de 1825 - Vila Nova de Famalicão, São Miguel de Seide, 1 de Junho de 1890), algo que corresponda a Os Maias, de Eça de Queirós, um título que seja a obra-prima consensual. Se O Amor de Perdição se foi aproximando desse estatuto, deve-o a um conjunto de motivos muitos vezes pouco claros e até falsos. O livro só integrou os programas escolares durante um período muito curto e não foi exactamente feito na prisão — Camilo tinha estranhos privilégios para um preso: saía da cela para apanhar sol todos os dias. 

E também não será obra-prima pela esquecida dimensão triangular da paixão de Mariana por Simão. Nem pelo facto de, já no final, Simão, a caminho do exílio, estar mais interessado no seu destino do que na ligação amorosa com Teresa, que definhava no convento de Monchique... 

Ainda há muito a saber sobre O Amor de Perdição. Até pelo humor que esconde. Há um (maravilhoso) diálogo entre Mariana e Simão que, por exemplo, sugere interessantes conotações sexuais. Preocupada com a relutância de Simão em alimentar-se, Mariana leva-lhe um "caldinho" e diz: "(...) coma sem nojo, que esta [malga] nunca serviu." Uma tensão erótica que, na sua adaptação do livro ao cinema, Manoel de Oliveira traduzirá numa cena quase "pornográfica", com Mariana a apresentar a Simão uma galinha de pernas escachadas, numa travessa que transporta à altura da sua própria vagina. 

E talvez o papel central de Simão Botelho, o pouco recomendável tio de Camilo, que serviu de inspiração ao Amor de Perdição, ainda mereça uma revisão. Ou mesmo Simão, o protagonista do romance de Camilo, figura bastante contraditório, proto-moderna, se quisermos. 

Seja como for, a análise do manuscrito levou os especialistas à convicção de que Camilo escreveu mesmo o livro em 15 dias e do prefácio que deixou, em 1879, para acompanhar a 5.ª edição de Amor de Perdição, resulta uma profecia de um escritor que nunca se teve em baixa estima, mais ainda se pensarmos que, quando o escreveu, vivia já a crítica no elogio da escrita realista de Eça de Queirós:
 "Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5.ª edição do Amor de Perdição quase esgotada."

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