segunda-feira, fevereiro 10

Retrato do escritor por mãos alheias



Como acontece com as cartas escritas no tempo em que ainda eram importantes e insubstituíveis, muitas das que aqui se transcrevem são em si mesmas peças literárias. No ramalhete, Agustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eduardo Lourenço, Vitorino Nemésio, Eugénio de Andrade, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Jack Lang, Mário Soares, Gonzalo Torrente Ballester, Teixeira de Pascoaes. São vários momentos em que nos deparamos com um retrato do escritor por mãos alheias. 

“Acredito bem que seja um homem atarefado, um médico, um escritor, um génio repleto de responsabilidades. Mas até um deus teria tempo para uma inutilidade mais”, diz-lhe com ironia Agustina, a quem Torga não terá dado a resposta esperada depois de esta lhe ter enviado o seu livro de estreia, Mundo Fechado. “E a verdade é que, quando penso em escrever, toda a minha vida, todas as pessoas que participam dela, desejos, esperanças, realidades, me parecem simples pormenores. Por isso não compreendo que o senhor, consciente da sua arte e da sua vocação, se alastra em queixumes no seu diário público, ante a sua vida negativa de médico e a sua verdadeira de poeta e artista”, sublinha a escritora, deixando ver até que ponto escrever uma carta é também um ato de confissão. 

Escreve Eduardo Lourenço, a comentar o livro “Portugal”, de 1950: “cada página é terra nossa e conserva bem os passos seus, as suas esperanças e amarguras”, e que os lisboetas irão “queimar em efígie ou ignorá-lo ‘lisboetamente’”.

Eugénio de Andrade fala da “atitude acusadora” de Torga “em frente dum mundo que faz glória em estar cada vez mais podre”, a elogiar a sua poesia “de imagem direta e espontânea, desenho linear, as palavras densas, sem qualquer duplicidade”, em que água é mesmo água “e um barco é um barco”. Eugénio admira Torga e agradece-lhe ter escrito poemas que “doem”, mas não se coíbe, em 1960, de o criticar: “Desta vez prefiro a prosa aos versos, pois enquanto na prosa a sua aflição ganha, por vezes, ressonâncias de catástrofe, nos versos, os ritmos, as imagens começam a perder a capacidade de surpreender. Não é isto fatal, em qualquer poeta?” 

Sophia alegra-se muito com Torga. “Quando você escreve tenho a impressão de que é a língua mais cheia de nobreza, de plenitude e de verdade” e partilha questões pessoais, como quando fala de Agustina, de quem sempre pressentiu “um pacto secreto com o mal”...

Vitorino Nemésio é serio e sentencioso: “Acabo de saber (...) que a ‘Montanha’ foi apreendida. Acho a coisa tão estranha e arbitrária que não encontro palavras. De resto, para quê palavras, se é nelas que está o crime? (...) Estou cada vez mais desconfiado de que a verdadeira sorte de um escritor é sofrer. Exprimir isto que faz o fundo do homem e esta beleza da vida é na verdade abrir as veias”.

Antes, em 1930, a propósito de Rampa — segundo livro poético de Torga —, foi Fernando Pessoa a reagir ao envio de um exemplar. Comunica-lhe ter gostado dos poemas e comparando a sua sensibilidade com a de José Régio: “O que em si é ainda por aperfeiçoar é o modo de fazer uso dessa sensibilidade. Há que separar mais os dois elementos que naturalmente a compõem; ou que confundi-los ainda mais.” 

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