segunda-feira, junho 10

500 anos: "Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,/ De vós não conhecido nem sonhado?"



Discurso de circunstância à parte, é com Os Lusíadas que praticamente começa o português que ainda hoje falamos. Camões rescreveu a parte da História de Portugal que maior contributo deu à humanidade, mas, fundamentalmente, uma obra sobre a vontade e valor do conhecimento. E o nosso escritor sabia que um dia um dia seria seu. Está tudo numa estrofe do canto X:

Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado.
Nem me falta na vida honesto estudo,

Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.


É claro que "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" e já poucos querem saber do melhor de nós. Jorge de Sena diz bem disso no seu poema "Camões dirige-se aos seus contemporâneos" (pode escutar aqui na voz do autor).

CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E, mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

*

Enfim, um homem de génio.

“Como notou António Sérgio, em todas as mulheres amadas, e mau grado a sua diversidade, procurou Camões o mesmo ideal de siso, graça, mansidão, recato. A tonalidade moral dos atributos exigidos — sem dúvida acusa no amante o homem espiritual. Por outro lado, bem podem tais atributos ser uma preferência da sua sexualidade. Em todas as mulheres amadas só uma verdadeiramente procuraria e amaria, — talvez tão cara ao seu espírito como desejada pelo seu corpo. E mais uma vez deparamos com os dois modos de amar tão camonianos — o de corpo de carne e o da alma mística — que naturalmente Camões procuraria fundir; ou nele se procurariam fundir, não obstante ser o seu antagonismo que aparece. Mais uma vez se trava, pois, num homem de génio a velha luta, que busca um entendimento, da matéria e do espírito: Enquanto o homem de carne humanamente suspira pela sua amada, e a deseja como qualquer deseja a mulher por quem suspira, ”Pede o desejo, Dama, que vos veja.”, sabe o amante espiritual que, entre nós, o desejo não resiste longamente à posse. Por isso foge à sua satisfação — é o único meio de o perpetuar — e tem a triste separação da mulher amada por maior bem que a sua presença: ”Não quer‘ logo o desejo o desejado, Só por que nunca falte onde sobeja.” 

José Régio, in “Discurso sobre Camões”, Ensaios de Interpretação Crítica, José Régio, Obras Completas, Portugália Editora, 1.ª ed., 1964 , p. 61-62.

*

Talvez possamos dizer que Teófilo Braga é o "pai" deste Dia de Camões. Foi dele a ideia da comemoração do III centenário da morte de Camões, que cria as bases para que o 10 de Junho pudesse vir a ser feriado nacional. Falou-se nisso na época, mas nunca foi feriado no período da monarquia. Teófilo empenhou-se muito na promoção da figura de Camões como símbolo nacional. Os republicanos impuseram um modelo de celebrações importado da França e da Revolução Francesa, o que fez com que os monárquicos e a própria Corte tivessem hesitado no modelo das comemorações desconfiando da figura de Camões. As comemorações mobilizaram Câmaras de todo o país, associações e houve um grande cortejo, que partiu da Praça do Comércio e foi depor flores na estátua de Camões, que contribuiu para a afirmação dos republicanos como força política, embora o próprio rei tenha presenciado as comemorações. Só a partir de 1911, o 10 de Junho passa a ser feriado municipal de Lisboa. Em 1924, quando se celebrou o IV centenário do nascimento de Camões, o 10 de Junho foi a data escolhida. A imprensa da época utilizava a expressão Festa da Raça para as comemorações camonianas.

*

A casa onde terá morrido Camões, na Calçada de Santana, n° 139, em Lisboa, aquando do 10 de Junho de 1911. Na placa, pode ler-se: “Nésta casa, segundo a tradição documental, falleceu em 10 de Junho de 1580 Luiz de Camões. O actual proprietario Manoel José Correia mandou pôr ésta lapide em 1867". 

Foto de Joshua Benoliel
*
Com que voz
—poema de Luís de Camões, música de Alain Oulman, voz de Amália Rodrigues ♫


Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura paixão me sepultou.
Que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado.

Mas chorar não estima neste estado
aonde suspirar nunca aproveitou.
Triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.

Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima ao pé que a sofre e sente.

De tanto mal, a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente,
por quem a vida e bens dele aventuro.

*

«Dir-me-ão que eu sou absurdo, ao ponto de querer que haja um Dante em cada paróquia e de exigir que os Voltaires nasçam com a profusão dos tortulhos. Bom Deus, não! Eu não reclamo que o país escreva livros, ou que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros que já estão escritos e que se interessasse pelas artes que já estão criadas» *

Eça de QueirósNotas Contemporâneas, Porto, Lello, pp. 1393-1413

* "Eça aproveitou a ocasião para denegrir as comemorações camonianas que tinham tido lugar em Lisboa a 10 de Junho de 1880 e a cuja organização Pinheiro Chagas estivera ligado. As festas tinham consistido num «cortejo cívico», em que várias carretas, representando a agricultura, o exército, as colónias e a imprensa, haviam percorrido as ruas da capital, ornamentadas estas por colchas penduradas das varandas. A ideia germinara em meios republicanos, mas, a meio caminho, o regime decidira adoptá-la20. Apesar de vários amigos seus, Ramalho Ortigão, Batalha Reis e Teófilo Braga, terem participado no acontecimento, Eça considerou-o ridículo. E resolveu afirmar não ser com colchas penduradas, mas com uma cultura viva, que uma nação se prestigiava." (Maria Filomena Mónica, daqui)

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