domingo, fevereiro 2

81

Vão-se abrindo portas, portas, portas e de cada vez que se abre uma, à espera de encontrar qualquer coisa, é a dor, é o silêncio, é a escuridão de uma coisa que não tem fim e mais nada. Vai-se esperando e pedindo tanto, que cedo se descobre que o cinema não tem consolo. Que a película nem sequer é tão saborosa como um gelado. Que ele, no fim, gostava de não ser cineasta, não ser artista, já não desejar ser o Murnau, o Jean-Marie Straub, o Truffaut “do centro”, u Godard “que se isolou”, ou Manoel da “uma fasquia muito alta”,  apenas tão afável e simpático como o marido da empregada lá do prédio.



E é tudo como na “Comédia de Deus”: não há lugar possível. Talvez só compromissos bancários, aqueles que não só põem tudo no sítio como põem tudo em marcha. Depois paga o cinemascope, o décors ou guarda-roupa, logo se vê. E, claro, tudo que se põe em marcha exige uma explosão: a prova do desastre. A adversidade é propícia e o que o filme tem é fruto das circunstâncias. 

A sagração de João César Monteiro é a de quem se quis antes em transgressão, um João de Deus, provocador e marginal. Nos Sapatos (1971), criou uma personagem inteiramente sua, Lívio, a que Luís Miguel Cintra deu corpo e ele, César, deu voz — e que haveriam de se reencontrar, muitos anos passados, em Recordações da Casa Amarela ("Tu não és o velho Lívio?", perguntará João de Deus/César). Em Sophia de Mello Breyner Andresen (1972), um extraordinário e depurado objecto, típico home movie sobre a poetisa e o seu espaço familiar. Realista e insolitamente cósmico. Um singular exercício, depois, com Que Farei Eu Com Esta Espada? (1975), o filme "anti-imperialista" e reactivador de uma figuração nacionalista (o cruzado andrógino que empunha a espada, a pretexto de ser contra a Nato). Nosferatu comparece-se pela primeira vez e o testemunho de uma prostituta abre o catálogo da sexualidade oral no cinema de Monteiro. Este refluxo da revolução, deu também Veredas e Silvestre (1978), “descendente” do admirável Trás-os-Montes, realizado dois anos antes por António Reis e Margarida Cordeiro, operando sobre uma memória mítica do imaginário português, com foça interior e política,  antecipando o precioso Recordações da Casa Amarela (1989),  um jogo do sagrado e a blasfémia, onde João César Monteiro se assume como actor principal, criando uma personagem (João de Deus) que é, de uma só vez, uma projecção sarcástica do seu cepticismo existencial e um ser tendencialmente burlesco que se dá bem com o olhar clínico da câmara de filmar. Lembra-se: capítulos 23-28, João de Deus/César vai ter com a mãe que, humilde, faz trabalhos de limpeza, interpretada por Maria Ângela, viúva de Carlos de Oliveira, persistente figura tutelar invocada no cinema de Monteiro, pede-lhe dinheiro e na cena seguinte está a passar em frente a uma sala "porno". A adaptação de A Filosofia na Alcova, de Sade, nunca chegou a ser feita, mas a célebre Branca de Neve (2000) foi o escarcéu que foi e foi também o apogeu do César provocador e delirante por ter um microfone à frente e por poder dizer em "prime time" que queria que o público português se fodesse. No fim, Vai e Vem (2003), o olho derradeiro abre-se para Dreyer e Bach. “Voltamos ao princípio”.

Descomprometido — talvez melhor adjectivo que "livre"—, João César Monteiro nasceu a 2 de Fevereiro de 1939 e morreu a 3 de Fevereiro de 2003. Faria 81 anos neste sábado.

Sem comentários:

Enviar um comentário