domingo, janeiro 6

Um editor na banheira (do Porto)

Foi com a cabeça e o peito fora de água que o jovem editor da Afrodite, Fernando Ribeiro de Mello, rodeado de jornalistas com blocos de notas, microfones e câmaras, ocupou boa parte da primeira página do Diário de Lisboa, no dia 16 de dezembro de 1971, sob o título Um editor na banheira.



O jornal convidava os leitores a seguirem, nas páginas interiores, o “relato fidedigno” de uma bizarra conferência de imprensa, assinada por Fernando Assis Pacheco, realizada na noite anterior, na casa do jovem editor de 30 anos, um rés-do-chão em Campo de Ourique, onde recebeu jornalistas e amigos do meio cultural dentro de uma ampla banheira circular cheia de água pré-aquecida, coadjuvado por uns sujeitos vestidos de diabo e um par de travestis em trajes menores em cujos corpos tinham sido desenhados os títulos dos quatro livros a apresentar: uma edição em dois volumes da História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito, com textos de Fernando Luso Soares, José Saramago e Maria Lúcia Lepecki e ilustrações de Cruzeiro Seixas, Carlos Calvet e José Escada; o Grande Livro de S. Cipriano, com comentários de Alçada Baptista, António José Forte e outros, e ilustrações de Martim Avilez; as Aventuras de Alice no País das Maravilhas, com notas de Manuel João Gomes e ilustrações de John Tenniel, e ainda o Anti-Dühring de Friedrich Engels, este imediatamente proibido pela Censura.
É a este episódio que a exposição Editor de Vanguarda: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite, na Biblioteca Pública Municipal do Porto (BPMP) até ao final do mês, dá justificado destaque mostrando a sua repercussão na imprensa da época. Uma mise en scène que não foi só engraçada, foi a mais corajosa defesa pública da pequena edição portuguesa feita até hoje. A exposição (obrigatória) apresenta o catálogo quase integral da Afrodite, mas também a correspondência de Ribeiro de Mello, documentos da Censura e outros objectos importantes para percebermos a importância e percurso da Afrodite.
A história de vida do editor que chegou a Lisboa sem dinheiro nenhum (recolhia garrafas para comer com o dinheiro que recebia da entrega do vasilhame, enriqueceu aos 30 e faliu, curiosamente, com o estado democrático português, aos 50 anos, é contado aqui, fora da banheira, mas com igual qualidade.

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