terça-feira, janeiro 15

"Meu querido menino,

... o 12° ano é um ano perigoso. É o ano onde tu vais tomar as decisões mais importantes da tua vida. O ano passado, com 16 anos, pudeste decidir se querias mudar de sexo, mas agora tens 17, mas tu és tão menino!.., não podes ouvir falar de pedofilia e masturbação, exceto se o "porco" do teu professor o entender ou te sobrar verba, depois de adquirires a habitual erva para a rambóia que é a tua Queima, e comprares os jornais que, por estes dias, reproduzem a "badalhoquice" cortada ao Campos." 

Enfim, isto não foi dito, mas podia ter sido acrescentado pela editora que sucedeu à Atila na mutilação d´ A Ode Triunfal com linhas pontilhadas e não com sinal corrente para indicar a supressão de um excerto (três pontos entre parêntesis).



No manual Encontros, destinado à disciplina de Português do 12.º ano, o poema com 240 versos é transcrito praticamente na íntegra, à exceção de três versos que foram cortados por opção dos autores deste livro: "Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas (…)" e depois, num trecho mais à frente, foram cortados mais estes dois: "E cujas filhas aos oito anos -- e eu acho isto belo e amo-o! --/Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada." Já a Ática, em 1944, em pleno Estado Novo, cirurgicamente também expurgou exactamente esse mesmos versos que a censura salazarista considerava ofenderem a moral e os bons costumes. A frase "e de putas" foi substituída por uns pontinhos e foi cortado todo o verso "Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada", que dá lugar a uma linha pontilhada. O manual da Porto Editora recorre à mesma solução gráfica não ignorando (pois são célebres e atuais os seus próprios dicionários) que o sinal corrente para indicar a supressão de um excerto são três pontos entre parêntesis. E também opta por não colocar nenhuma nota de rodapé ou alguma indicação no fim da transcrição que possam explicar os critérios editoriais.

Jovens adolescentes ficam, assim, nas mãos dos seus professores, impossibilitados de lerem por si os verbos censurados de um dos mais importantes poemas de ruptura e de construção da heteronímia de Fernando Pessoa. Numa época em que se investe fortemente nos debates e na educação sexual, poupamos os nossos "meninos" de 17 e 18 anos ao obsceno Álvaro de Campos. Outra vez.

ADENDAS:

ADENDA 1: Há filhos e enteados:





















ADENDA 2: 

"Este é um poema de invectiva contra toda a sorte de vícios e de sinais de degenerescência da civilização europeia, legitimando, inclusivamente, que o engenheiro igualmente condene (sob a aparência de um triunfalismo da máquina e da indústria) aquela "fauna e flora totalmente desconhecida dos antigos". Ironiza-se o binómio de Newton na comparação com a Vénus de Milo. Sarcástico e em convulsões, o sujeito dirige a sua verve aos motores e aos maquinismos sádicos de guindastes lúbricos. Ode anti-triunfal porque na "flora estupenda, negra, artificial e insaciável" há a promiscuidade de quem quer rasgar-se todo e abrir-se a todos os "perfumes de óleos e calores e carvões". Num estilo estrepitoso e virulento porque o futurista Campos, discípulo de Whitman, mas contemporâneo de Marinetti, escreve febrilmente "rangendo os dentes", Campos derrama a raiva de saber que toda esta civilização da guerra, da banalidade e da máquina corrompe o ideal clássico de outras eras. Um verso final comprova a impossibilidade de redenção: "Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!". Não leu Pessoa Thomas Carlyle e a sua noção de génio? O ser tudo de todas as maneiras não se relaciona com a procura de diferentes linguagens e ideias para cada um dos seus heterónimos? E não é a decadência o conceito operatório de finais de oitocentos e de inícios do século XX?

"Não é só a amputação de textos literários que devemos lamentar – é a superficialidade das propostas de trabalho e um sistema educativo que não preza a memória e a historicidade dos textos literários."

(António Carlos Cortez, Público, 17.01.2019)


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