Doutorada com uma fundamental (e ainda pouco comentada para a importância que parece ter) tese sobre a escrita policial de Pessoa, O Fio e o Labirinto (Colibri, 2016), morreu esta segunda-feira, aos 70 anos, a pessoana Ana Maria de Freitas*. Entre outros contributos importantes, deixa trabalho próprio em cinco volumes publicados na Assírio & Alvim, dois dedicados à ficção policiária, Quaresma Decifrador (2008) e Histórias de um Raciocinador e o Ensaio “História Policial” (2012), e três à recolhas de contos: O Mendigo e Outros Contos (2012), A Estrada do Esquecimento e Outros Contos (2015) e A Porta e Outras Ficções (2017).


Valerá a pena aproveitar a lamentosa data para (re)lembrar o seu fundamental trabalho e, em especial, aquele que em tese nos deixou, onde leva a cabo uma análise minuciosa do corpus fragmentário de Pessoa e do seu enorme interesse pelo género policial, de que era um ávido leitor, como revelam as notas, testemunhos de contemporâneos e os volumes contidos na sua biblioteca particular. Do seu generoso trabalho percebemos que interessavam a Pessoa, muito mais do que o enredo, as reflexões das personagens e ao jogo intelectual de decifração do enigma do crime, mas também importantes contributos para a questão da heterónima.
Começando, nesse trabalho de tese, por analisar «o lugar da ficção na prosa de Fernando Pessoa» (p.15 ss.), mostra como a escrita do autor foi constante ao longo de todo o percurso e tendo por base uma análise das listas de projetos e dos planos editoriais, elabora um detalhado percurso cronológico, associa obras relacionando-as entre si, remetendo para uma certa unidade (a nomes de autor capazes de marcar as suas características distintivas), fazendo emergir um primeiro mapa cronológico para, em seguida, mapear o corpus por temáticas e géneros.
É particularmente relevante a inclusão do famoso título «a carta da corcunda para o serralheiro» numa categoria de narrativas designada por «monólogos de autodiagnóstico» (p.62), entendendo-a como conto incompleto e em que «Maria José» surge apenas como assinatura dessa mesma carta, sugerindo que se trata não de uma autora (personalidade), mas de uma personagem.
Seguindo todo o percurso "policial" de Pessoa, Freitas aponta para a sua transformação por volta de 1913/14, altura em que surge a figura do inspetor Abílio Quaresma (cf. 203 ss.) — na concepção do seu editor póstumo, um decifrador da realidade, um habitante da baixa lisboeta cujo sentido da existência é exclusivamente marcado pelo seu raciocínio e lógica. Freitas apresenta-o como figura semelhante à do ajudante de guarda-livros Bernardo Soares, no sentido que parece também legar à posteridade a tarefa editorial de publicação e divulgação da sua obra, a partir dos casos que o solucionou e construída tendo por base os relatos dessas testemunhas das narrativas. Freitas descreve Quaresma como outro tipo de uma «mutilação de si próprio», que Pessoa indica estar na base da criação de Soares (cf. 221-26) e sugere a possibilidade de Quaresma ser autor de uma obra escrita: «shakespeare | estudo de detecção superior pelo extincto dr. abílio Quaresma» (cf. 230). Questão ainda em aberto...
* Obituário, por Luís Miguel Queirós, Público
* Obituário, por Luís Miguel Queirós, Público
Sem comentários:
Enviar um comentário