segunda-feira, janeiro 8

A psicanálise no conflito de interpretações

 

"Por achar relevante, Zenith traça um retrato de Pessoa onde articula três aspetos: (i) uma infância caracterizada pela presença de um intruso e de uma nova família que teriam provocado uma sensação de estranhamento, logo, uma espécie de evasão ou refúgio nos estudos; (ii) um “problema sexual” que ao, longo da obra, vai dar lugar a uma rebarbativa tendência para fazer valer a homossexualidade de Pessoa; (iii) e uma última preocupação relativa à psicanálise, inspirada em Freud, como chave de leitura da vida, mas também da obra de Pessoa. Reconheça-se que, algumas páginas depois, o próprio Zenith reconhece que “não há provas de que se tenha envolvido em atos de pederastia ou qualquer tipo de sexo com homens”. Chegando à conclusão, que parece indicar algo de matizado, que o poeta “não era heterossexual, homossexual, pansexual ou assexual, era androginamente monossexual”. Aliás, a ideia da androginia — enquanto “atenuação das diferenças sexuais” já tinha servido para caracterizar os modernistas, em geral, incluindo Pessoa (Fátima Inácio Gomes, “Sexualidade”, in “Dicionário de Fernando Pessoa”). Todavia, na maior parte das vezes ao longo do seu livro, Zenith dá a entender a existência de uma estreita ligação de Pessoa à homossexualidade.
Em “O Mistério da Poesia”, Gaspar Simões recorrera a Freud, no capítulo intitulado “Fernando Pessoa e as vozes da inocência”. Pessoa respondeu-lhe, insurgindo-se contra a interpretação freudiana da sua infância e obra poética. O poeta não disputava o êxito de Freud. Reconhecia que a moda em que se tinha tornado o sistema freudiano estava ligada à originalidade do critério por ele usado, que se baseava “(salvo desvios em alguns sequazes) numa interpretação sexual”.Na mesma carta de resposta a Gaspar Simões, a propósito de Mário de Sá-Carneiro, Pessoa levou mais fundo o ataque à interpretação freudiana. Considerou-a dogmática e perguntou: “Porque se baseia na falta de elementos para formar um juízo?” Logo de seguida, encadeou um reparo a seu próprio respeito: “Tem v. a certeza, só porque eu o digo e repito, que tenho saudades da infância e que a música constitui para mim — como direi? — o meio natural estorvado da minha íntima expressão.” Sendo certo que Mário de Sá-Carneiro perdera a mãe aos dois anos e nunca conhecera o calor materno, Pessoa considerou que os amadastrados da vida podiam ser falhos de ternura, mas alguns “viram sobre si mesmos a ternura própria, numa substituição de si mesmos à mãe incógnita”. Mais adiante, acrescentou que ele não sentia saudades de nada, talvez por ser futurista. Por isso, o que se deveria constituir em objeto de crítica seria unicamente o sentido das suas construções literárias.
A reconstrução feita por George da infância de Pessoa rompe com a interpretação de Gaspar Simões amplificada por Zenith. Antes de mais, rejeita a ideia do padrasto-intruso, do salto abrupto para a homossexualidade e do uso, espontâneo e pouco refletido, da psicanálise enquanto chave de leitura dos escritores e das suas obras. Sublinhe-se, ainda, o facto de o padrasto merecer palavras de ternura, na sua relação com Pessoa, as quais se situam nos antípodas da ideia de intruso. Na base da interpretação de George, talvez esteja o testemunho da sobrinha do poeta, a qual escreveu acerca do tio que “foi uma criança muito amada, um adolescente compensado por distinções na escola, um jovem apreciado e considerado por familiares e amigos” (Manuela Nogueira, “O Meu Tio Fernando Pessoa”). De qualquer modo, Hubert D. Jennings, ao fazer a biografia de Pessoa em Durban, já tinha posto em causa a interpretação de Gaspar Simões, recusando-se a aceitar a ideia de que o trauma da morte do pai teria levado à formação de uma personalidade introvertida, ainda por cima demonstrou que o padrasto era atencioso e acolhedor. George também valoriza o papel desempenhado na vida intelectual de Pessoa pelo general Henrique Rosa, irmão do padrasto. Se o poeta tivesse de facto uma relação difícil com este último — que escreveu ao irmão para dar apoio ao Pessoa, quando ele chegasse a Portugal — quereria relacionar-se com o seu irmão? O padrasto, que terá influenciado Pessoa a inscrever-se no curso comercial, chamava-lhe teimoso manso. Este não era um epíteto desagradável, apenas indicia que terá havido momentos de desacordo (quem os não tem?), mas que daí não resultaram conflitos graves. No mesmo sentido, as páginas que George dedica à infância de Pessoa estão pejadas de manifestações de apreço, afetos e brincadeiras, por parte de avós, tios e tias, primos e criadas, mas sobretudo da mãe e do seu segundo marido, em relação ao rapaz. Tal assim é que se pode colocar a questão de saber se a indiscutível precocidade, do ponto de vista da aquisição dos conhecimentos de Fernando Pessoa ou do que comummente se designa pelo seu lado genial, não terá florescido graças ao ambiente afetivo de segurança criado pela família.
Em conclusão, no conflito de interpretações que opõe os dois recentes biógrafos de Fernando Pessoa e que já fez correr muita tinta, a caracterização da infância e da vida sexual do poeta feita por Zenith parece amplificar um conjunto de aspetos, de orientação freudiana, anteriormente utilizados por João Gaspar Simões e que começaram por ser postos em causa pelo próprio Pessoa. Aparentemente, trata-se de um ponto de vista que se generalizou, a ponto de se ter imposto como a única interpretação possível. Mas não será melhor e mais pertinente pô-lo em causa?"
Diogo Ramada Curta, Expresso

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