domingo, setembro 3

O problema da cultura em Portugal


”O problema da cultura, o problema da mentalidade: este é se me não engano, o problema característico do Portugal moderno e o mais grave dos problemas da sociedade portuguesa. Com efeito, se olharmos o nosso passado, ver-se-á que até o fim do Quinhentismo Portugal acompanha galhardamente o melhor espírito europeu, a mentalidade dos povos cultos; então, pode-se dizer que ele está na Europa, e a muitos respeitos na vanguarda dela; mas depois ... Depois, desde essa data, o facho apaga-se; e o que se vê posteriormente é o estacar (o cair de golpe) desse Portugal do Renascimento. O espírito português do Quinhentismo — foi promessa que se não cumpriu. Dá-nos a impressão de um adolescente, talentoso e prometedor, a quem uma doença do sistema nervoso viesse arrancar subitamente os dotes físicos e mentais. Passa-se do Reino da Inteligência — para o Reino da Estupidez; e enquanto a França, a Suíça, a Itália, a Holanda, a Alemanha, a Inglaterra fazem ampliar no século XVII as conquistas do Renascimento, com um grande esplendor de sol merídio (o passo mais decisivo, decerto, de toda a história do pensar humano), nós regressamos à Idade Média no que respeita à faina da investigação científica, da busca da intelecção do Universo. Assim, pode dizer-se resumidamente, no ponto de vista intelectual, que a história do País no Seiscentismo é o espectáculo do estiolamento da mentalidade portuguesa; e que: a sua história no século XVIII, e que a sua história no século XIX, é a das goradas tentativas para nos repararmos desse grande mal. Depois dos dias do Quinhentismo, o que se chama espírito moderno nunca mais vigorou na nossa terra — se bem que brilhasse, por vezes, em alguns portugueses excepcionais, que se cultivaram no estrangeiro, que se não entenderam com os seus patrícios, e que combateram sem resultado a mentalidade do seu país. Para Ribeiro Sanches, no século XVIII, Portugal é o «Reino Cadaveroso»; e um satírico inteligente chama-nos «o Reino da Estupidez». E agora? Agora, no século XX? Agora — estamos na mesma. Relativamente, no mesmo estado. Não nos iluda a existência de portugueses excepcionais, que se educaram nos Iaboratórios e nas leituras dos estrangeiros. A cultura autêntica, a cultura crítica, não impera ainda em Portugal. Somos o «Reino Cadaveroso»; somos o «Reino da Estupidez».
ANTÓNIO SÉRGIO (Damão, 3 de Setembro de 1883 – Lisboa, 24 de Janeiro de 1969), in "António Sérgio", Obras Completas, Ensaios II, Livraria Sá da Costa, que pode ler aqui. 

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