segunda-feira, outubro 17

"SEI DE BEIJOS MAIS NOCTURNOS DO QUE A TERRA"


António Ramos Rosa (Faro, 17 de Outubro de 1924 – Lisboa, 23 de Setembro de 2013) é autor de uma das obras poéticas mais extensas e marcantes da poesia portuguesa contemporânea, Além da sua vastíssima obra poética, escreveu livros de ensaios que marcaram sucessivas gerações de leitores de poesia, como Poesia, Liberdade Livre (1962) ou A Poesia Moderna e a Interrogação do Real (1979), traduziu muitos poetas e prosadores estrangeiros, sobretudo de língua francesa, e organizou uma importante antologia de poetas portugueses contemporâneos (a quarta e última série das Líricas Portuguesas). Era ainda um dotado desenhador.Um jovem leitor que queira iniciar-se na sua poesia vai sentir-se muito facilmente perdido, mas não deve desanimar. Uma pequena ajuda:
SEI DE BEIJOS MAIS NOCTURNOS DO QUE A TERRA 
"Sei de beijos mais nocturnos do que a terra
Animais submersos entre violentas árvores
vêm ao cimo das bocas convulsivos oleosos
Sei da grandeza fulgurante ondulada e eléctrica
das bocas ávidas e do sangue que vem do fundo
como um incêndio que floresce em lábios espumosos
Sei de uma estranha suavidade e de um pensativo ardor
que modula o beijo numa demora fascinada
Quem poderia dizer a glória fluida e ardentíssima
destes líquidos músculos que desembocam em estuários de espuma?]
Sei de beijos como abelhas de sol e como uma agonia
de uma longa glória Conheço as matérias salgadas
e agridoces a argila a seiva o vinho
e o grés das axilas a lua negra do púbis
Conheço o sabor aceso e espesso do intacto
que imediato se entrega na violência silenciosa.
*
POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO

"A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só."

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