sábado, abril 23

Deixou muitas lições




George Steiner (Neuilly-sur-Seine, 23 de abril de 1929 – Cambridge, 3 de fevereiro de 2020) aproximava-se de Harold Bloom na defesa do cânone ocidental e no receio de que este está a ser ameaçado pelos novos movimentos críticos surgidos a partir dos anos 60 do século XX. 

E deixou muitas lições. 

Talvez a mais importante a encontremos em Errata: Revisões de Uma Vida (2009) a propósito de descoberta de Sein und Zeit (Ser e Tempo), de Martin Heidegger, que viria a ter a oportunidade de conhecer, mas recusou: 
"Não me atrevi. E acredito que tinha razão. Sempre respeitei um princípio: não há necessidade de importunar os adultos, eles têm outras coisas para fazer. Além disso, nunca suportei aqueles que se consideram importantes porque colecionam encontros com grandes nomes. Nessa tarde [um professor havia falado um filósofo sem se comprometer a dizer o nome durante a aula], aventurei-me por um parágrafo de Sein und Zeit (Ser e Tempo). Não consegui perceber sequer as frases mais curtas e aparentemente mais diretas. Mas o turbilhão recomeçava, a irrecusável intimação de um mundo que eu desconhecia profundamente. Jurei a mim mesmo tentar de novo. E de novo. É aqui que eu quero chegar. O que é importante é orientar a atenção de um aluno para aquilo que, de início, excede a sua compreensão, mas cuja estatura e fascínio irresistíveis o atraem. A simplificação, o nivelamento, a redução da fasquia, que dominam agora toda a educação salvo a mais privilegiada, são criminosos. Descuram fatalmente capacidades que permanecerão ocultas”.
Fugimos das grandes obras de arte com medo de serem difíceis, com medo de serem só para quem tem tempo infinito para se dedicar a estudá-las. E é também uma lição válida para quem lê os seus ensaios, repletos de minudências e armadilhas para apressados. 

Mas quem foi Steiner? Claudio Magris, em Alfabetos, ajuda:
“Sabe ser, ao mesmo tempo, grand seigneur e Luftmensch, como diz a palavra alemã que indicava a existência precária, quase vivida ao ar livre e feita de nada, dos hebreus orientais obrigados a viver de expedientes incertos, numa existência perenemente flutuante. Tudo isso lhe permite percorrer as bases da literatura ocidental e os meandros da criatividade que, hoje, segundo adverte, estão prestes a desaparecer, colocados de lado por uma tecnologia que suplanta o próprio Homem”.

Steiner era também um provocador. E tinha um sadio horror à unanimidade e aos cânones obrigatórios. Ele sabia que a discussão do génio é das coisas mais divertidas que há. Ainda que isso lhe diminuísse a lista de "amigos".
"José Saramago não é o maior escritor português da actualidade. Para mim, esse é, de longe, António Lobo Antunes. É um gigante. Ele é um grande, e Portugal não lhe deu ainda o devido reconhecimento. Devia ter ganho o Nobel há já algum tempo. Mas não aconteceu. Por causa de Saramago. Deviam ter ganho ambos, em partilha." (George Steiner à revista LER).
Deixou-nos uma entrevista póstuma de enorme interesse e sinceridade, mostrando arrependimentos e agradecimentos. Toda a entrevista é recomendável, mas, novamente, a sua última resposta é fracamente inspiradora, medindo bem o que se perdeu com 90 anos:

P. Você recebeu algum conselho que mudou sua vida?

R. É claro. Especialmente aqueles que minha mãe me deu com todo o seu amor. Devo a ela ter me incentivado a viver de maneira frutífera com minha deficiência. Quando era criança, para me fazer reagir em momentos de desespero, ela me dizia que a “dificuldade” era um “dom” divino. Além de me livrar do serviço militar, meu defeito me deu a oportunidade de aprender a melhorar, de tentar entender que, sem esforço, não se consegue nada na vida. Lembrei-me disso em diferentes circunstâncias. Uma das conquistas mais bonitas da minha existência foi quando consegui amarrar meus sapatos pela primeira vez com a mão paralisada.
E o resto encontram, fundamentalmente, na Gradiva, na Relógio D´Água e no obituário do Público, do também essencial (reconheçamo-lo antes que chegue aos 90 anos), Luís Miguel Queirós.

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