segunda-feira, junho 6

Desgraça, tristeza, solidão e, hoje, o esquecimento

                               


Hoje esquecido, Gomes Leal (Lisboa, 6 de junho de 1848 — 29 de janeiro de 1921
foi um poeta de surpreendentes ruturas e inovações, exerceu influência na sua geração e projetou-se no século XX. Não há nenhum exagero. Fernando Pessoa percebeu e consagrou-o em versos emblemáticos:

“Seus três anéis irreversíveis são
a desgraça, a tristeza, a solidão.
Oito luas fatais fitam no espaço. (…)
Inúteis oito luas da loucura
quando a cintura tríplice denota
solidão e desgraça e amargura!
Mas da noite sem fim um rastro brota,
vestígios de maligna formosura:
é a Lua além de Deus, álgida e ignota.”
(Fernando Pessoa, Cancioneiro, Maio de 1930)

Mas os efeitos devastadores do alcoolismo aceleraram a progressiva desagregação física e intelectual, enquanto resvalava na mais deplorável miséria. Nesta situação de angústia e desespero, Gomes Leal — o poeta com relâmpagos satânicos, mas com um cristianismo afetivo que se manifestara em “História de Jesus” (1883), um dos seus livros de maior êxito — é levado a converter-se ao catolicismo. A conversão transpôs o domínio da privacidade e ficou devassada na “Carta aos Sacerdotes Christãos”. Entre outras afirmações que deram brado, avulta esta confissão perentória: “Solenemente declaro que me retrato, repilo, abjuro de todos os escritos e poemas em que se mantém matéria contrária aos ideais que atualmente professo, e que foram de escândalo para Cristo e a sua Igreja.”. A 5 de outubro implantou-se o regime que tivera nele um dos mais inflamados propagandistas, mas, na hora da vitória, encontrou no outro lado da barricada, Afastaram-se os antigos correligionários, mas pouco depois também os católicos e os monárquicos. Ficou só, pobre, desamparado, sde apatos rotos, calças esburacadas e fato velho e cheio de nódoas. Sem ter onde comer e dormir, passava as noites nos bancos do Rossio e da Avenida. Transformara-se na imagem que visionara, em 1880, em ‘Fome de Camões’ ao reconstituir os passos do poeta, a caminhar pela capital


“altas horas, ao frio das nortadas
é Camões que de fome se definha
nas ruas de Lisboa abandonadas. (…)
Triste, velho, sem-abrigo,
faminto, abandonado e vagabundo,
tenta esmolar também pelas esquinas. (…)
A mão recusa-se a suster o passo
a fome roí-o, curva-o o cansaço.
Cospem-lhe a neve, a chuva os aguaceiros.
Ó calçadas fatais! nas enxurradas
vai muito fel de lágrimas choradas.”


Teixeira de Pascoaes ofereceu-lhe a sua casa em Amarante. Não quis sair de Lisboa. Jaime Cortesão fez um apelo veemente ao Parlamento para que lhe pagassem uma pensão de sobrevivência. Ladislau Batalha recolheu-o em sua casa onde viria a falecer.

Desafiou o poder e os poderosos em situações pontuais com protestos incendiários que o levaram aos tribunais e às prisões. Batia-se por causas políticas e objetivos sociais. O escândalo suscitado pelo Tratado com a Inglaterra para a venda de Moçambique foi um dos momentos retumbantes de intervenção pública, no poema ‘A Traição — Autópsia de um Rei’. Não poupou o rei D. Luís, nem os ministros envolvidos neste processo. O mesmo sucedeu ao interpelar o jornalista António Rodrigues Sampaio que, ao ascender a membro do Governo e a primeiro-ministro, era acusado de perseguir a imprensa, esquecendo o seu passado revolucionário: 

“Eis-me, em frente de ti velho urso na caverna (…) perguntando-te, ó Velho — onde está o Direito?/ o que fizeste ao Povo, á Consciência ao Brio?/ Onde está o pudor, rude ancião sombrio?/ Quem és? Quem és? Quem és — velho cheio de fel?/ Onde está, ó Caim o teu irmão Abel?/Quem és? Quem és? Ó Gloria! Ó nome hoje aviltado!/ Tu foste a alma do povo, hoje um renegado.”

Mas Gomes Leal nunca esqueceu o valor dos seu actos: 

“um panfletário é uma bexiga inchada/ de cólera, de fel, de inveja e dinamite/ que um dia explodirá assim que o fogo excite/ fazendo rebentar o mundo em estilhaços”.

Uma das referências da obra de Gomes Leal situa-se em 1875 ao publicar “Claridades do Sul”, mas coincidiu com a versão definitiva de “Odes Modernas”, de Antero de Quental, e a primeira versão de “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz. Gomes Leal tinha 27 anos e teve uma celebridade precoce. A grande viragem na poesia verificara-se com Antero, a partir de 1864, em “Odes Modernas”. Mas a obra de inovação e de rutura, “Claridades do Sul” assinala, uma reivindicação geográfica em face dos outros centros literários: de Coimbra das centenárias tradições culturais repartidas entre a Universidade e o Mondego; das névoas e brumas do Porto e de outros locais do norte, por vezes, em intercambio com a Galiza. Lisboa, muito antes de Orpheu (1915), além de capital política, desde tempos remotos, possui vida cultural autónoma. Num poema sobre Lisboa, Gomes Leal exalta a luz, a cor, os aromas, a singularidade das colinas e a configuração dos bairros, enquanto se detém nos anacronismos e contrastes das populações:

“A cidade é beata: e às lúcidas estrelas,/ o vício à noite, sai aos becos e às ruelas,/ sorrindo, a perseguir burgueses e estrangeiros.../ E à fosca e dúbia luz dos baços candeeiros,/ — em bairros imorais, onde se dão facadas —/ rola, às vezes, o vinho e o sangue nas calçadas.”(…) “As mulheres são gentis. — Umas frágeis, morenas,/ graves, sentimentais, amigas de novenas,/ ébrias de devoções, releem as suas Horas./ — Outras fortes, viris, os olhos cor de amoras,/ os lábios sensuais, cabelos bons, compridos,/ às vezes, por enfado, enganam os maridos!” (…)

É implacável ao denunciar (tese de Antero) os fatores de atraso e mediocridade que, há séculos, contribuíram para a decadência social e cultural não só da cidade, mas do próprio país:

“No entanto, a sua vida, é quase intermitente./ Chafurda na inação, feliz, gorda, contente./ E, eclipsando as ações dos seus navegadores,/ abrilhanta a batota e as casas de penhores./ Faz guerra à arte, à Ação, ao Ideal… e, ao cabo,/ — é talvez a melhor amiga do Diabo!”

Poesia de largo fôlego — onde tudo é sempre levado aos extremos — deixou dezenas de livros e folhetos, recentemente publicados em edições críticas da Assírio & Alvim. Exerceu influência na sua geração e nas gerações seguintes: Cesário Verde e Camilo Pessanha. Abriu caminho à poesia do século XX. Louvado pelos poetas do “Orpheu”: Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Alfredo Guisado, Luís de Montalvor e Raul Leal, teve a maior audiência no grupo e na geração da “Presença”. Vitorino Nemésio que o biografou e antologiou.

Perdeu a relação imediata com o grande público, que só se entusiasma com incursões pontuais, mas a posteridade reencontrá-lo-á sempre nesse território intemporal dos génios. E, quem sabe, a INCM um dia se lembre de publicar a sua obra absolutamente desaparecida em ano de... centenário da sua morte.


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