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Adolfo Casais Monteiro (Porto, 4 de Julho de 1908 - São Paulo, Brasil, 23 de Julho, 1972). Poeta, tradutor, crítico e ensaísta |
À MEMÓRIA DE ADOLFO CASAIS MONTEIRO, de Jorge de Sena
Como se morre, Adolfo? Tu morreste
(toca o telefone às duas da manhã em Lourenço Marques era a Joaninha em lágrimas a dizer que o padrinho tinha morrido eu não queria crer e mesmo perguntei – tendo tantos compadres – quem era o padrinho dela cuja morte chegava em notícia de Lisboa a Mécia e eu ficámos silenciosos com os olhos marejados das lágrimas que só vieram no dia seguinte esperávamos mais dia menos dia tão doente estavas aquela notícia agora mais incrível por chegada inopinadamente do outro lado do mundo que não era sequer aquele em que morrias)
– e diz-me o Pimentel numa carta tão triste:
enquanto dormias a tua solidão
e estavas morto e sereno pela manhã alta.
Morreste na mesma solidão altiva e tímida
com que foras discreção e delicado ser
escondido em máscaras de sorriso amargo
e de palavras ásperas e rudes. Igual aos versos
que escreveste como raros no molhar da alma
em sangue e sentimento já essência
e só profunda vida oculta em música
puríssima de câmara em cordas tensas
a que o ranger dos arcos se somava ambíguo.
Ninguém mais nobremente ergueu em si
o monumento da morte esse viver contínuo
num só de se indicarem por oblíquos
sinais os gestos limpos da amizade
e os limpos mais ainda de um amor constante
que o teu corpo buscou em tantas mulheres
amando só algumas fielmente na tortura
de não se amar tão bem quando o desejo.
Adolescente, amadureceste para uma velhice
a que te deste como monge laico
incréu de tudo menos desse amor perdido
que à tua volta, em livros como em música,
era um sussurro de memórias silentes
a rodear-te de vácuo a tua sala vazia.
Como se morre, Adolfo? Trinta e três
anos – uma idade perfeita – conheci-te,
soube de ti o dito e o não dito, o que escreveste
e o que não escreveste. Por instantes,
os teus olhos cruzavam-se num viés de vesgo
que era um saber terrível de estar só no mundo
e não haver que valha a pena que se diga
sem destruir-se quanto em nossa via é o pouco
indestrutível se guardado à força
num silêncio de exílio e de distância.
E todavia como estiveste no mundo, como
duramente bebeste toda a dor do mundo,
ou a fumaste em nuvens de cigarros que matavam
os teus pulmões possessos de asfixia.
Foste o estrangeiro e o exilado perfeito
e por todos nós que recusámos de um salto
por outras terras esta terra há séculos de outrem,
morreste em dignidade, sem queixas nem saudades
a queixa e a saudade mais pesadas
pesadas para o fundo, sem palavras
que as não há entendíveis aonde não se entende
a perfeição tranquila em desespero agudo
a que te deste num morrer sem voz.
Morreste só, como viveste. Sem conversa,
como escolheste viver. Longe de tudo,
como a vida te deu que tu viveras.
E tão presente, mesmo se esquecido,
és como o fogo ardente a requeimar quem pensa
que em Portugal de Portugal se é.
Como se morre? Neste instante extremo,
sentiste um respirar que te alargava
e te expandia o peito mais os olhos
até os confins deste universo inteiro?
Abriste os olhos? Só em sonhos viste?
Morreste – como se morre? – E no teu rosto
qual nos teus versos poderá ser lido
até que nem pensaste nem disseste.
Mas isso tu sabias, e creio que foi pouco
oh muito pouco o que a morte foi capaz de te ensinar.
Porto, 26/8/1972, in Conheço o Sal... e Outros Poemas (1974)
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