
Pega-se no 1984, de George Orwell, e o Estado totalitário gera um departamento que se dedica a descobrir e apagar todo o passado reescrevendo os livros e destruindo os originais em fornos escondidos. Recuamos a 1941, na Polónia, e faz-se uma grande fogueira para tratar do caso. Em 1953, Ray Bradbury, no Farenheit 451, coloca um corpo de bombeiros encarregado de queimar livros que perturbassem a ortodoxia do sistema dominante. Antes, em 1935, já Elias Canetti condenara seu personagem de Auto-de-fé a morrer queimado com toda a sua biblioteca. E antes ainda, o movimento futurista, em 1910, publicara um manifesto em que preconizava o fim de todas as bibliotecas. Um pouco mais à frente Borges, em "O congresso", conto incluído n´ O Livro de Areia (1975), fez um do seus personagens dizer que a cada tantos séculos há que se queimar a biblioteca de Alexandria. E de tudo o que os gregos escreveram já se sabe que só se conservou uma pequena porção. Até Platão os terá queimado (ou não impediu ele a entrada dos poetas no seu Estado ideal, na sua República?). Em todos os casos, o destruidor de livros não é um ignorante. Para os gregos a memória era a mãe das nove musas, chamava-se Mnemósine. É por isso que se destrói um livro: para aniquilar a memória e os destruidores contam com um elevado senso criativo. Dai que hoje, Dia Mundial do Livro, cheire um pouco a queimado.
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ADENDA 1:
“Hitler foi um homem que ficou mais conhecido por queimar livros do que por os coleccionar, e, ainda assim, quando morreu com a idade de 56 anos, tinha em sua posse cerca de dezasseis mil volumes. Uma colecção, sem dúvida, impressionante: primeiras edições de várias obras de filósofos, historiadores, poetas, dramaturgos e romancistas. Para ele, a biblioteca simbolizava a nascente de Piéria, essa metafórica fonte de conhecimento e de inspiração, onde procurava colmatar as suas inseguranças intelectuais e alimentar as suas ambições fanáticas. Lia com sofreguidão, pelo menos um livro por noite, por vezes mais, segundo dizia. "Quando damos, também devemos saber tirar", disse uma vez, "e eu tiro o que preciso dos livros."
Timothy W. Ryback, A Biblioteca Privada de Hitler, Civilização Editora, 2011, p. 9
ADENDA 2:
"Penso que, afinal, apenas devemos ler livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos a ler não nos desperta, como um golpe no crânio, porque lemos, então, o livro? Para nos fazer feliz, como escreves? Meu Deus, ficaríamos felizes na mesma, se não tivéssemos livros — e livros que nos fizessem felizes, poderíamos nós escrever, em caso de necessidade. Mas precisamos é de livros que nos atinjam como um infortúnio pungente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós próprios, como se fôssemos banidos para a floresta, longe de toda a gente, como um suicídio, um livro deve ser o machado para o mar gelado dentro de nós. É o que penso."
Franz Kafka, carta a Oskar Pollak, de 27 de Janeiro de 1904.
ADENDA 3:
"O livro é um mudo que fala, um surdo que responde; um cego que guia; um morto que vive; e não tendo acção em si mesmo, move os ânimos, e causa grandes efeitos."
Padre António Vieira, “Sermão de Nossa Senhora de Penha de França”
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