domingo, março 5

Sentir a câmera



O cinema do aniversariante do dia, Pier Paolo Pasolini (Bolonha, 5 de Março de 1922 — Óstia, 2 de Novembro de 1975), é muito especial por ter adquirido o gosto de fazer sentir a câmera. O enquadramento insistente faz com que ela espere que a personagem entre no quadro, faça ou diga alguma coisa, e depois saia, enquanto ela, a câmera, continua enquadrando o espaço que voltou a ficar vazio; Deleuze diria, “deixando novamente o quadro entregue a sua pura e absoluta significação de quadro”

Ficou uma consciência política — o povo não é uma caução estética, mas antes uma entidade que desafia a estabilidade de qualquer estética — , mas sobretudo poética. É conhecida a sua expressão “Cinema de poesia” (O cinema de Poesia, Assírio & Alvim, 1982), fazendo ênfase na metáfora visual e encontrando na noção de “subjectiva indireta livre” uma complexa operação não apenas linguística, mas sobretudo estilística. Mas se celebrizou a expressão, é justo sublinhar que essa ideia artística vem dos teóricos formalistas russos, os primeiros a discernir um cinema de prosa de um cinema de poesia. (A propósito, depois, a Nouvelle Vague francesa fará ligação entre a literatura e o cinema clássico americano e a Nouveau Roman procurará novas vias possíveis para a relação palavra-imagem, mais obsessivas e por ai adiante). Porém, se a literatura assumiu importância fundamental no cinema de Pasolini, o climax dá-se exactamente no ponto em que o cineasta a "abandona": “Quando faço um filme, não há entre mim e a realidade o filtro do símbolo ou da convenção, como acontece na literatura. Por isso, na prática, o cinema foi uma afirmação do meu amor pela realidade.”

Mais do que a efeméride, importa sublinhar que a herança estética de Pasolini permanece viva. Pasolini, do americano Abel Ferrara, um retrato íntimo, não tanto do realizador de filmes, mas mais do intelectual que nunca cedeu a qualquer facilidade populista e O Pequeno Quinquin, do francês Bruno Dumont, saga rural que revaloriza o realismo “pasoliniano” que começa na integração de actores populares.

Antonio Muñoz Molina escreveu, em 2017, que Pier Paolo Pasolini foi profético e previu sozinho a chegada da "Idade do Lixo". Nanni Moretti, no filme Querido Diário, homenageia-o e vai na sua “lambretta” ao local onde ele foi assassinado.

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