domingo, novembro 21

Já lhe sentem a falta?


Um mês antes de Mário Soares morrer, Vasco Pulido Valente, pseudónimo de Vasco Valente Correia Guedes (Lisboa, 21 de novembro de 1941 – Lisboa, 21 de fevereiro de 2020), fez-lhe um telefonema “sentimental e delicodoce”: disse-lhe que foi a grande figura da história portuguesa desde as Invasões Francesas e que gostava muito dele. Deixou a previsão que Bolsonaro vai acabar com o Estado federal brasileiro, mas não acredita que coloque o Brasil fascista, porém, a tendência dos nossos anos 20 é, para ele, a dos anos 30 do século passado: exacerbado nacionalismo por toda a parte à excepção do nosso pais. Não há nacionalismo que pegue aqui. "É por isso que a extrema-direita nunca vingou, mesmo com o Salazar. O Salazar meteu a extrema-direita na cadeia e proibiu a Legião Portuguesa de andar fardada nas ruas". Num país em que ter feitio é malvisto, morreu um homem com feitio.

Tinha a segurança intelectual e académica para ter opinião sobre tudo. Apenas com uma exceção. Já lá vamos. Tinha a certeza de que as ciências sociais são “uma fraude”, que têm o mesmo estatuto ontológico de Deus: "não existem, ou dão os resultados que as pessoas querem que dê" e tinha solução para a polémica sobre nome "Museu dos Descobrimentos": o nome usado por Salazar, “Museu do Mundo Português”. 

Claro que foi chamado de fascista, mas ainda assim sempre disse que não havia direita em Portugal. "Existem pessoas de direita, não existe direita" e algumas são uma desgraça. Rui Rio era para ele uma desgraça. Não por estar mais à esquerda, mas por ser "um homem de ideias fixas, ultra-autoritário e convencido da sua superioridade como ninguém no mundo político com um único critério: saber se alguém está de acordo com ele". 

António Costa não se revelou nenhum mistério. Considerava-o um mero tático, apenas com um problema: não precisa da maioria absoluta, só precisa de ter mais votos do que o PSD e o CDS e mais votos do que o Bloco e o PCP e assim nunca será removido. Para que fosse removido era preciso uma aliança entre a direita e a esquerda e essa aliança via-a como absolutamente impossível. O único perigo que Costa tem (não é o Pedro, não é) é o PS e o Bloco fazerem maioria. 

Para VPV, o grande mistério da política portuguesa dava pelo nome de Passos Coelho. Gostava muito dele, mas como pessoa distante era difícil percebê-lo para lá de lhe reconhecer um extraordinário autodomínio. "O que ele deixa sair sobre o que se passa na cabeça dele é muito pouco". Não soube dizer-nos nada sobre o futuro dele. 

Tinha uma curiosa e venenosa expressão para explicar o que são os maus livros, dizia que era como o Marcelo — implausíveis. "Lê-se e não se acredita. Com o Marcelo vê-se e não se acredita". Dava um exemplo e uma sentença: uma História da Europa, soi disant, sob o ponto de vista da classe operária escrita pela Raquel Varela. "Nunca vi tanta ignorância junta. É um abismo de ignorância, não só sobre a história da Europa entre 1914 e 1945, como sobre a história da classe operária que ela não conhece. Isto mostra como está a sociedade portuguesa". 

Enfim, isso dos conflitos não o preocupava. Começou-os com a mãe

Cunhal era o Afonso Costa abortado pelo 25 de Novembro. Mário Soares a grande figura da História Portuguesa Moderna, o grande operário da democracia portuguesa. Fez a Democracia contra os pseudorrevolucionários do PREC, mas também, depois, contra Ramalho Eanes e um partido populista e militarista que se chamava PRD, Partido Renovador Democrático. E ao Sá-Carneiro diz que Soares fez uma oposição "com meio-coração""Não gostava, mas percebia que aquela coisa precisava de ser feita. A direita precisava de ir legalmente para o poder". 

Sim, tinha uma fixação muito especial: Cavaco Silva. Nunca lhe perdoou, com tanto dinheiro, não ter percebido o que era preciso fazer no país. "Fez umas estradas, deu uns subsídios para a agricultura, deu dinheiro a pessoas que tinham duas vacas para deixarem de ter duas vacas que receberam o dinheiro, compraram uma mota e abriram um café. De repente havia cafés por todo o país e a agricultura de subsistência continuou". Nunca lhe perdoou não ter explicado em que país vivíamos e o que ia fazer para o mudar.

Sobre a nossa actualidade, pediu para que Deus Nosso Senhor nos livre do partido Livre, intriga que só podia, segundo ele, ser criado por Rui Tavares e nunca escondeu que à velocidade com que fala, é impossível que Catarina Martins pense no que diz. Invocava, também, e sempre, o Nosso Senhor para falar do CDS que não resistiu a ir atrás do Chega"Deus Nosso Senhor os salve, que mais ninguém pode".

No internacional, assinalou o perigo do populismo catalão, que a nossa extrema esquerda carinhosa e significativamente apelida de democracia catalã. E que tanto Trump como Boris Johnson existem por uma razão, não servindo de nada armadilhas constitucionais ou parlamentares para os parar: os conflitos da sociedade são reais, não são retórica.

Sobre a União Europeia deixou escrito: "é um veneno e vai acabar". 

Critico das novas tecnologias, não por elas, mas pelos seus utilizadores, sempre disse que chamar às massas ignorantes e berrar contra as fake news não é realista. "Nunca houve massa mais educada na história da humanidade, nunca teve tantos utensílios e tanta preparação. Mas a massa em si própria, por definição, não tem mecanismos de controlo". O problema: não se sabe como é que se vai fazer o equilíbrio entre a massa democrática que está a criar o politicamente correto e depois o próprio politicamente correto. O politicamente correto libertou uma enorme massa de indivíduos que não tinham liberdade individual. Intrigava-o saber como é que esta afirmação do indivíduo nas causas do politicamente correto se pode compadecer com um regime democrático em que uma maioria manda de forma opressora. "É uma massa, e não sabemos o que vai fazer essa massa".

Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa, doutorado em História pela Universidade de Oxford, reformado do Instituto de Ciências Sociais, era oriundo do grupo de católicos progressistas reunidos na revista O Tempo e o Modo e militante do MAR (o Movimento de Acção Revolucionária de Jorge Sampaio). Dizem que oscilou sempre entre o PS e o PSD. É capaz. Foi secretário de Estado da Cultura (1980) por escolha de Sá-Carneiro, deputado do PSD (1995) e apoiante da candidatura presidencial de Mário Soares. Foi ainda guionista de vários filmes, entre eles O Cerco (1970), de Cunha Teles, protagonizado por Maria Cabral, sua primeira mulher e mãe de sua filha, a crítica literária Patrícia Cabral. A seguir viveu três anos com Maria Filomena Mónica, casando outras quatro vezes, duas das quais com a jornalista Constança Cunha e Sá. 

Um observador implacável e surpreendente. Sente-se o vazio.

>>> À conversa com Pedro Rolo Duarte [Falatório, RTP, 1997].

2 comentários:

  1. Não tinha ouvido isto. É um privilégio ficar a saber pela boca de um historiador que nos anos 60 tudo se obtinha sem esforço, não era preciso fazer a tropa, qualquer jovem apanhava o avião para Oxford e voltava para ter logo emprego. O que faz a propaganda: tantos idiotas enganados emigrando de pé descalço para terras de França e alguns com a ilusão de que eram desertores.
    Eis Vasco Groucho Pulido Marx Valente.

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    1. Talvez nem só pelas hipérboles chegou a Groucho, mas também. Concordo.

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