sábado, fevereiro 18

O bonito "feio artístico"


António Aleixo (Vila Real de Santo António, 18 de fevereiro de 1899 — Loulé, 16 de novembro de 1949) é um "feio artístico"? Serena-nos Umberto Eco, no seu magnífico História da Beleza (2009, Difel), o "feio artístico" é uma categoria que vai sendo modificada com as grandes e ligeiras revoluções culturais. Boccaccio parodiou as Lauras renascentistas, os românticos elevaram o Belo ao Sublime terrível, Baudelaire encontrou o belo no decadente e as mulheres mais bonitas foram deformadas pelo gosto requintado de Picasso. Ao longo dos séculos a arte foi sempre identificada com o belo, mas esse belo foi mudando ao longo dos tempos. Até Gioconda ganhou bigodes!

Procurar o Belo na nossa cultura popular está eriçado pelas nas maiores dificuldades. A análise científica não abunda. Teófilo Braga terá sido o último  apóstolo de uma poesia popular com a sua História da Poesia Popular Portuguesa (1867, Typographia Lusitana) e seguidor de uma mitologia popular que aponta para uma contaminação inter-classista de culturas. E nem o 25 de Abril trouxe maior estudo. Veja-se, por exemplo, a comunicação apresentada por Arnaldo Saraiva ao l.° congresso dos escritores portugueses, realizado a 11 de Maio de 1975, subordinada ao título As duas literaturas (a «pobre» e a «rica»), in Literatura marginalizada, Porto, 1975, pp. 103-108.

Sem grandes reflexões sobre o juízo de valor a dar à obra, a do António Aleixo está enquanto documento do espaço e do tempo em que as visões do mundo de um poeta tradicional, visto sempre como menor, contaminado pela assiduidade do seu contacto com um estrato social superior, o amoldou aos cânones de um republicanismo anti-clerical, à luta contra o obscurantismo e à liber­dade de pensamento. Tudo isso condimentado com as maiores preocupações de justiça social, o que lhe da grande actualidade, sem pôr em causa a sociedade de classes ou modificar significativamente a sua visão do mundo. O seu ideal não passava pela subversão nem pela revolta, mas pela ideologia do progresso, da ciência e da justiça — sublinhe-se: estávamos no Algarve, nos anos 30/40, do século XX, a influência das ideias do marxismo ainda não tinham chegado a este sul.

Teorias literárias à parte, as pequenas "ilhas" da nossa província onde se demoraram os últimos lampejos de uma tradição interessante, desapareceram. O nivelamento cultural, que a técnica tornou irreversível, trouxe-nos até esta "cultura de aeroporto". Com António Aleixo, fica a memória de como o povo cantava e sentia. "A  actualidade da mensagem torna-se mais evidente nas novas condições da vida portuguesa. O poeta está, afinal, mais vivo, hoje, do que enquanto andou por este mundo" (Joaquim Magalhães).


Peço às altas competências
Perdão, porque mal sei ler,
P’ra aquelas deficiências
Que os meus versos possam ter.
.

Uma mosca sem valor 
poisa c’o a mesma alegria
na careca de um doutor
como em qualquer porcaria.
.

Eu não tenho vistas largas, 
nem grande sabedoria, 
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.
.

Os que bons conselhos dão
ás vezes fazem-me rir
por ver que eles mesmos, são
incapazes de os seguir.


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