O que mais impressiona nesta mesa de convidados para a celebração dos 107 anos de Vergílio Ferreira (Gouveia, 28 de Janeiro de 1916 - Lisboa, 1 de Março de 1996),é a falta de discípulos. Bem sei que temos um Gonçalo M. Tavares, que até cita o Mestre no seu 𝘈𝘵𝘭𝘢𝘴 𝘥𝘰 𝘊𝘰𝘳𝘱𝘰 𝘦 𝘥𝘢 𝘐𝘮𝘢𝘨𝘪𝘯𝘢𝘤̧𝘢̃𝘰, mas a frieza e aquele estilo de escrita "pós-humanista" afasta-o do pathos mais lírico e irónico que define o modo vergiliano - confessando que, estranhamente e contra todas as minhas forças, cansei-me do Tavares, não resistiu ao tempo, ao contrário deste Vergílio de 107 anos. Seja como for, celebra-se um homem dotado de uma invejável bagagem literária e filosófica. Professor durante quase toda a vida, penso que leu tudo o que valia a pena na filosofia ocidental, mas nem por isso acertou sempre no alvo. São deliciosas as suas polémicas, longe das de Camilo, sim, mas ainda assim suculentas. No início dos anos 50, para tentar travar a crescente consagração de Fernando Pessoa, escreveu um texto para a Vértice que mereceria uma violenta réplica de Adolfo Casais Monteiro. Resultado: "O meu combate era injusto e amochei", admitirá mais tarde no seu diário. Outra célebre polémica foi travada em 1963 com o então neorrealista (e certamente por causa desse movimento) Alexandre Pinheiro Torres. Este aproveitou a recensão de V.F. a Rumor Branco, de Almeida Faria, para zurzir no prefaciador do romance, enviando-lhe algumas farpas divertidas, como a de censurar o facto de em Estrela Polar, história passada em Penalva (na verdade, Guarda), todas as personagens se entregarem às mais sofisticadas reflexões: "Toda a gente filosofa em Penalva, transformada em cave existencialista da serra da Estrela".... Vergílio Ferreira terá tido vontade de responder à letra, mas acabou por encerrar o debate com um texto em que se mostra consciente de que ele e o seu adversário são apenas os instrumentos ocasionais da polémica em torno do neorrealismo. Em 1968 travará outro duro debate, desta vez com Eduardo Prado Coelho, defendendo o existencialismo contra o estruturalismo que este professava. E no início dos anos 70, "liga-se" a Luiz Pacheco quando este edita um folheto intitulado O Caso do Sonâmbulo Chupista, que circulou por toda a cidade de Lisboa, entregue à mão, no qual se denunciava o plágio de Fernando Namora em Domingo à Tarde (1961) sobre a Aparição (1959) de Vergílio Ferreira, fundamentando a acusação com a transcrição de trechos dos dois livros visados. Embora esta polémica fosse involuntária, pois não foi pela boca de Vergílio que o Pacheco soube do plágio, mas pela do Serafim Ferreira, Namora nunca lhe perdoou e elegeu-o o seu inimigo nº1 até ao fim. A estas polémicas devem juntar-se, para compor o ramalhete, as admirações e aversões mais espontâneas de Vergílio Ferreira. Aqui, a sua biblioteca, em que os livros mais profusamente anotados e sublinhados são os de Filosofia, é preciosa. Em breve, virá por ai alguma tese de doutoramento que nos surpreenderá – as anotações conhecidas fazem-no imaginar. Por exemplo, no Nome de Guerra, de Almada Negreiros, Vergílio faz logo uma crítica na folha de rosto a dizer que não gosta nada daquilo e no Amor em Tempos de Cólera, de Gabriel Garcia Márquez, escreve: "folhetinesco, piroso, arbitrário, inverosímil". Se para Para Sempre e Aparição são consideradas obras-primas, Vergílio Ferreira tinha um fraco por Alegria Breve (1965), sobrando para grande dilema Nítido Nulo, em que, para uns, são apenas personagens passeando ideias como meros portadores, para outros, a porta de entrada para a sátira e o humor negro no autor e, para outros, ainda, uma resposta do existencialista ao estruturalismo de Roland Barthes, de Michel Foucault e à "morte do autor". Sobram depois os ensaios, talvez a "pista" onde Vergílio Ferreira ultrapassou todos.
"– Porque é que, no silêncio da noite, nos assusta falar em voz alta? Nunca fizeste essa experiência? (...) Era preciso fazê-la. Mergulhados no silêncio nocturno, sentimo-nos não existir."
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“Admiram-se às vezes certas pessoas de que um autor medíocre seja normalmente o triunfador do seu tempo. Mas o autor medíocre é que é admirado pelos medíocres. E a mediocridade é o que há de melhor distribuído pelos homens.Vergílio Ferreira, Conta-corrente 4
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SOBRE A TELEVISÃO“15. Porque é que a TV foi essa «caixinha que revolucionou o mundo»? Faço a pergunta e as respostas vêm em turbilhão. Fez de tudo um espectáculo, fez do longe o mais perto, promoveu o analfabetismo e o atraso mental. De um modo geral, desnaturou o homem. E sobretudo miniturizou-o, fazendo de tudo um pormenor, misturado ao quotidiano doméstico. Porque mesmo um filme ou peça de teatro ou até um espectáculo desportivo perdem a grandeza e metafísica de um largo espaço de uma comunidade humana.
Já um acto religioso é muito diferente ao ar livre ou no interior de uma catedral. Mas a TV é algo de minúsculo e trivial como o sofá donde a presenciamos. Diremos assim e em resumo que a TV é um instrumento “redutor”. Porque tudo o que passa por lá chega até nós diminuído e desvalorizado no que lhe é essencial. E a maior razão disso não está nas reduzidas dimensões do ecrã, mas no facto de a «caixa revolucionadora» ser um objecto entre os objectos de uma sala.
Mas por sobre todos os males que nos infligiu, ergue-se o da promoção do analfabetismo. Ser é um acto difícil e olhar o boneco não dá trabalho nenhum. Ler exige a colaboração da memória, do entendimento e da imaginação. A TV dispensa tudo. Uma simples frase como «o homem subiu a escada» exige a decifração de cada palavra, a relação das anteriores até se ler a última e a figuração do seu sentido e imagem correspondente. Mas na TV dá-se tudo de uma vez sem nós termos de trabalhar. Mas cada nossa faculdade, posta em desuso, chega ao desuso maior que é deixar de existir. Mas ser homem simplesmente é muito trabalhoso. E o mais cómodo é ser suíno...“
Vergílio Ferreira, Escrever, p. 23-24.
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VERGÍLIO FERREIRA: RETRATO À MINUTA
Documentário RTP de Diana Andringa. Duração: 44min.
A vida e a obra do escritor Vergílio Ferreira, num documentário originalmente exibido poucos dias antes do seu falecimento. Com imagens de arquivo, depoimentos diversos e
leitura de excertos de obras da sua autoria.
03m00: Actor Luís Lucas lê excerto de uma obra de Virgílio Ferreira. Retrospectiva fotobiográfica de Virgílio Ferreira. Imagens de Arquivo de uma entrevista a Virgílio Ferreira, fazendo o escritor uma breve autobiografia. Planos de fotografias dos pais de Virgílio Ferreira; intercalados com plano do actor Luís Lucas a ler excerto de um texto integrado no romance “Conta Corrente”. Imagens de Arquivo a preto e branco de Virgílio Ferreira com a sua mãe; excerto de entrevista a Virgílio Ferreira e planos do escritor no exterior e interior do Seminário do Fundão, onde foi matriculado com 10 anos de idade e que mais tarde vem a ser fonte de inspiração para o romance “Manhã Submersa”.
09m12: Entrevista a Laura António, Realizador sobre a adaptação a cinema do romance “Manhã Submersa”; intercalado com excertos do filme “Manhã Submersa”; intercalada com: Imagens de Arquivo a preto e branco de excertos de entrevistas a Virgílio Ferreira sobre a sua vivência no Seminário do Fundão e sobre o seu livro “Manhã Submersa”. Actor Luís Lucas lê uma passagem do romance “Manhã Submersa”.
17m47: Entrevista a Vasco, Cartonista sobre a escrita neo-realista de Virgílio Ferreira; intercalada com cartoons do autor alusivos ao escritor. Imagens de Arquivo de uma entrevista a Virgílio Ferreira, falando o escritor das obras e dos autores que o influenciaram. Actor Luís Lucas lê uma passagem de um romance de Virgílio Ferreira. Entrevista a Liberto Cruz, escritor fazendo uma apreciação literária da obra de Virgílio Ferreira. Continuação de entrevistas a Vasco e a Lauro António, ambos contextualizando a personalidade do escritor.
22m26: Imagens de Arquivo a preto e branco de excertos de entrevistas feitas a Virgílio Ferreira, sobre a forma e o conteúdo da escrita. Entrevista a Almeida Faria, Escritor e Professor Universitário, mencionando que o facto de ter tido Virgílio Ferreira como professor lhe “despertou o interesse pela literatura, libertando-o da ignorância total”; intercalado com imagens de uma sala de aulas do antigo Colégio do Espírito Santo, actual Universidade de Évora e imagens de arquivo de Virgílio Ferreira a passear e a fumar.
26m44: Imagens de arquivo da cidade de Évora plano geral com imenso casario pintado de branco, movimento de rua e planos de ruas. Plano próximo de manuscrito do romance aparição de autoria de Virgílio Ferreira. Imagens de Arquivo a preto e branco de excerto de entrevista a Virgílio Ferreira, referindo-se o escritor à génese da sua escrita; intercalada com planos do pátio interior da Universidade de Évora e fotografia de Virgílio Ferreira a dar aulas. Continuação de entrevista a Almeida Faria; intercalada com fotografia de Almeida Faria sentado numa mesa de sala de aula ao lado do seu professor Virgílio Ferreira. Entrevista a Paulo dentinho, Jornalista relembrando Virgílio Ferreira enquanto seu professor. Plano próximo da capa do livro “Cântico Final”, de autoria de Virgílio Ferreira. Continuação de entrevista a Liberto Cruz sobre a personalidade de Virgílio Ferreira. Imagens de Arquivo a preto e branco de excerto de entrevista a Virgílio Ferreira, mencionando o escritor que vive na cidade de Lisboa há cerca de trinta anos.
32m43: Entrevista a Serafim Ferreira, enumerando as cidades que fazem parte da vida de Virgílio Ferreira. Plano do Actor Luís Lucas a ler uma passagem de um romance de Virgílio Ferreira. Imagens de Arquivo a preto e branco de Virgílio Ferreira a passear com a sua mulher no jardim da sua casa de Fontanelas, Sintra. Continuação de entrevista a Liberto Cruz, referindo-se às tertúlias que mantinha com Virgílio Ferreira; intercalada com fotografia ilustrativa desses momentos. Continuação de entrevista a Vasco, sobre a sua participação nas tertúlias da casa de Virgílio Ferreira em Sintra; intercalada com uma fotografia do escritor com o cartonista.
37m21: Imagens de arquivo de Virgílio Ferreira a dar autógrafos e excerto de uma entrevista ao escritor com 77 anos de idade. Continuação de entrevistas a Liberto Cruz e a Serafim Ferreira sobre a personalidade do escritor; intercaladas com: plano do Actor Luís Lucas a ler uma passagem de um romance de Virgílio Ferreira e imagens de arquivo a preto e branco de Virgílio Ferreira a escrever. Planos de várias capas de livros de obras de Virgílio Ferreira.
42m38: Continuação de entrevista a Vasco, referindo-se à personalidade de Virgílio Ferreira. Plano do Actor Luís Lucas a ler uma passagem de um texto de Virgílio Ferreira, datado de 28 de Janeiro de 1946.
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