No livro de despedida de Armando Silva Carvalho, há um belo poema para quem (também) não aprecie lá muito a expressão "poeta solar2, cunhada por Luís Miguel Nava: “chegar a noite e com ela um poema do Eugénio, / magríssimo cauteloso, cioso das suas sílabas/ e da cal apagada junto à boca.” A Eugénio de Andrade corou-se sempre de cinza: “eu sei:/ é sempre a tremer que levo o sol à boca" (Contra a Obscuridade). Neste dia em que passam 100 anos sobre o nascimento do homem que queria o poema "fremente de luz, áspero de terra, rumoroso de águas e de vento" (Os frutos), ao sol ou à sombra, celebra-se as “mãos” e a “música” com que Eugénio de Andrade se eternizou.
As mãos, porque são um dos mais referidos lugares do corpo na sua poesia, como salientou Luís Miguel Nava (Cf. O Essencial sobre Eugénio de Andrade, Lisboa, IN-CM, 1987, p.21) e o instrumento da sua escrita. Tocam, acariciam, sentem os outros e as coisas, unindo o homem à palavra e à natureza. O próprio poeta, em Rosto Precário, confirma a preponderância do tacto na sua poesia: "Se sou poeta pela graça de todos os sentidos, é o tacto que desempenha o papel principal. Tocar a pele rugosa ou doce das coisas, acariciá-las e senti-las abrir nas mãos, num abandono confiante – eis os primeiros passos para uma plenitude que ao poema compete realizar integralmente".
A música, porque foi com essas tonalidades, a que juntou mestria do ritmo e da rima, que fez da sua poesia, uma espécie de música: "É outra vez a música,/ é outra vez/ a música que me chama" (Rente ao Dizer). Herberto Helder, na carta que lhe escreveu, depois de ler a sua poesia reunida, reparou na música se lhe metia nas palavras, sinuosa e complexa, algumas vezes deliciosamente difícil. A carta é uma bela prenda de centenário.
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O PÚBLICO ouviu a ensaísta Rosa Maria Martelo e Joana Matos Frias para tentar perceber se...
A obra de Eugénio está a sofrer um processo de
"retracção canónica"?
Joana Matos Frias (professora associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa): “Há mesmo um grande desinteresse pela obra de Eugénio na geração que tem agora vinte anos”, garante, acrescentando que, curiosamente, os poucos alunos que se têm mostrado interessados em fazer teses centradas na sua poesia são por norma brasileiros. As pessoas de 20 anos gostam de ler poesia em que reconheçam preocupações que não sejam apenas artísticas. Se os alunos se interessam hoje por Cesariny, Herberto Helder ou Jorge de Sena, e por obras como as Novas Cartas Portuguesas, acho que isso se deve a uma grande inclinação para um tipo de leitura que não prevalecia na segunda metade do século XX, quando ainda se vivia muito o antagonismo entre poesia pura e poesia empenhada, e havia um grande trauma com o neo-realismo, mas o enquadramento cultural e político deste início do século XXI levou a que as dimensões mais apreciadas na literatura tenham mudado bastante, e hoje as pessoas de 20 anos gostam de ler poesia em que reconheçam preocupações que não sejam apenas artísticas, e ficam também muito sensibilizadas por figuras cuja forma de vida coincide, ou parece coincidir, com a obra.
Mas este centenário é uma boa ocasião para se tentar despir Eugénio daqueles lugares-comuns a que ficou associado – ser o metaforista, o poeta da cal e da cotovia –, e voltar a lê-lo como se fosse a primeira vez, e à luz da sensibilidade actual”.
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No Expresso pergunta-se :
"PORQUE É QUE EUGÉNIO, CUJO CENTENÁRIO SE CELEBRA ESTE ANO, É MENOS ADMIRADO HOJE DO QUE HÁ UMAS DÉCADAS?
"Porque aquela delicadeza, ou talvez a pose dessa delicadeza, envelheceu; porque a omissão identitária é hoje reprovada; porque a alguns leitores os poemas parecem sentimentais, ou vagos, ou repetitivos. Nenhum desses defeitos me impressiona, nem o último. Eugénio é um daqueles poetas que diz muito bem o pouco que tem a dizer. A certa altura, é certo, o déjà vu instala-se, como se fosse Eugénio a fazer de Eugénio, sempre os mesmos choupos, as mesmas dunas, as mesmas frésias, as mesmas maçãs. Mas quem se queixa disso quando gosta de Cézanne ou Morandi? Não sei nem tenho como saber qual o lugar canónico de Eugénio, a posteridade é um enigma. Mas devo-lhe, sobretudo enquanto leitor, uma certa ideia de apuro e aprumo, de ritmo e eufonia, certas imagens, e o compromisso lírico, e a intimidade dos poemas connosco, poemas da velhice, outros da juventude, “de tanto que lhes queria,/ tudo tudo lhe doía”. (Pedro Mexia)
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