quinta-feira, setembro 15

Realista, panfletário, pré-simbolista e popular


Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, Ligares, 15 de setembro de 1850 — Lisboa, 7 de julho de 1923) foi alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta português, o mais popular da sua época e o mais típico representante da chamada "Escola Nova". É dele esta extraordinária descrição do nosso povo, de fazer corar de inveja um Miguel Esteves Cardoso: 
"O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroismo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante. Ruge com Passos Manuel, grunhe com D. João VI. É de raça, é de natureza. Foi sempre o mesmo. A história pátria resume-se quási numa série de biografias, num desfilar de personalidades, dominando épocas. Sobretudo depois de Alcacer. Povo messiânico, mas que não gera o Messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-o dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza."

Pátria (1896)”Anotações” (livro a que pode aceder, em versões digitais e gratuitas aqui

Poeta panfletário, a sua poesia ajudou a criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República. Talvez se possa falar em duas fases na sua carreira. A primeira  apresenta uma obra realista e agressiva. Exemplos: A Morte de D. João (1874), poema de grande força satírica, analisa e critica, em tom panfletário, a figura de D. João, o conquistador, e ataca com agressividade a mentalidade burguesa da época, e A Velhice do Padre Eterno, panfleto de censura à luxúria do clero e à decadência moral da Igreja. É dessa época, este poema, “Parasitas”:

No meio duma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.

Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.

E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,

Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando o corpo de Jesus.

Na segunda fase, o poeta volta-se para os valores espirituais, com uma poesia a serviço da salvação do homem. Reconcilia-se com a Igreja e cultiva a fé, a esperança e a caridade. Inspira-se nos motivos humildes e alimenta-se do lirismo, já a caminho da espiritualidade simbolista. Cria as obras-primas, como Os Simples (1892), Pátria (1896), Oração ao Pão (1902) e Oração à Luz (1903), como segue um pequeno trecho:
Oração à Luz
Claro mistério
Do azul etéreo!
Sonho sidéreo!
Luz!

Da terra dorida
Alento e guarida!
Fermento da vida,
Luz!

Eucaristia santa,
Vinho e pão que alevanta
Homem, rochedo e planta…
Luz!

Virgem ígnea das sete cores,
Toda abrasada de esplendores,
Mãe dos heróis e mãe das flores,
Luz!

“Se Guerra Junqueiro é um poeta mal-amado por muitos, os livros “A velhice do Padre Eterno” e “Pátria” são a fonte principal de todos os ressentimentos. Principalmente o primeiro. Compreende-se porquê: se a ideia dinástica ia aos poucos cedendo terreno ao mesmo passo que ganhava popularidade a ideia republicana, apregoada a cada canto e esquina por uma hoste de apologistas aguerridos, a Igreja — acusando embora danos provocados pelo abalroamento do racionalismo — permanecia uma instituição solidamente arreigada na alma portuguesa. Bulir com ela era bulir com o sentimento religioso de grande parte do povo português, justamente aquela parte que costuma dizer “Graças a Deus muitas, graças com Deus poucas”. É mais ou menos pacífico que Junqueiro não graceja verdadeiramente com Deus, com a ideia pura de Deus, não filtrada pelas humanas formulações do catecismo; mas graceja, e muito, e em termos muitas vezes difíceis de aceitar, com os vigários de Deus, desde o mais humilde cura de aldeia aos cardeais, aos núncios apostólicos e ao próprio Papa. (Mais tarde, em “Horas de luta”, chamará a Roma “necrópole maldita, dragão do mal, sepulcro enorme”.) Os gracejos da “Velhice” nem sempre mantêm a compostura; melhor dizendo, quase nunca mantêm. É evidente que Junqueiro considerava que o clero não era um espelho de virtudes ou, para usar um plebeísmo, “estava a pedi-las“. E que o dogma é uma violência à razão. Mas as generalizações são sempre abusivas. Há no livro escusada violência verbal, por vezes insolência crassa e de gosto duvidoso — de que é exemplo acabado “A sesta do senhor abade”. Joaquim Ferreira chama-lhe “a chacota mais ultrajante do catolicismo”. (“Homens e livros”).” .

A.M. Pires Cabral, Guerra Junqueiro — Poeta dual, ensaio que pode ler na íntegra aqui

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