domingo, janeiro 2

Claridade dada pelo tempo




VI
não posso
tu sabes que não posso
repetir-me
o sangue que cai uma vez
não torna a cair
a estrela   a febre
as unhas cravadas no peito
palavra já afirmada
dita por mim e por ti
não   não   não
não quero
outra vez a mesma existência
tu sabes
que o abandonar o corpo
dentro de uma longa superfície
nos faz saber que
– cavalo ou mola de aço –
tudo é exaustivamente brilhante
os próprios extremos da noite
 se colam aos nossos dedos
e palpavelmente nos aparecem
luminosos
erguidos eroticamente

o espaço povoado
por esferas de cristal
digo eu
não sei   talvez

não posso
tornar à primeira vez
que te encontrei

agora vai
leva os teus braços
os teus olhos
o teu sexo

parte
deixa-me apenas
o vento

maio 1950

Mário-Henrique Leiria  (Lisboa, 2 de Janeiro de 1923 — Cascais, Cascais, 9 de Janeiro de 1980) , Poesia - Obras Completas, Volume II, Organização e notas de Tania Martuscelli, E-Primatur, 2018, p. 150-151.

*


A INVENÇÃO DA ÁGUA

Como muito bem se sabe, no princípio não havia água.
Só havia o verbo.
Depois apareceram o sujeito e o complemento directo.
Mas de água, nada.
.
Então todos começaram a beber vinho e deus achou que era bom.
E lá isso era!
.
No entanto, com o aparecimento das primeiras culturas
do tipo comercial,tornou-se evidente
a falta de qualquer coisa
que pudesse aumentar a produção do vinho
e torná-lo mais rentável.
.
Era a água, claro.
.
Mas não havia água, como já fizemos notar.
As primeiras pesquisas,
então ainda bastante primitivas,
levaram à descoberta da água-pé.
.
Embora curiosa, essa descoberta não resolveu,
de forma alguma, o fim pretendido.
Continuava a não haver água. As pesquisas prosseguiram.
.
Felizmente o homem é assim, nunca desiste.
É isso que faz o progresso.
E largos tempos passados chegou-se a nova descoberta:
a aguardente.
.
Era melhor, não duvidemos, mas realmente não era o desejado.
Faltava a água. Definitivamente.
As civilizações pastoris, no seu nomadismo constante,
descobriram, acidentalmente, a água-bórica que,
aliás, nunca serviu para nada. Coisas de nómadas.
.
Foi então que no seio das culturas orientais
mais avançadas tecnologicamente,
surgiu a grande invenção:
um misterioso pó branco que,
deitado em mínima quantidade num litro de água,
o convertia,
quase milagrosamente,
num litro de água.
ESTAVA INVENTADA A ÁGUA
.
Inicialmente rara e só usada para fazer vinho,
tornou-se no entanto com o desenvolvimento industrial,
bastante acessível e abundante.
.
Ergueram-se os primeiros lagos,
deu-se início aos rios pequeninos e,
finalmente surgiram os rios maiores,
aqueles muito grandes,
que consta várias pessoas já terem visto por aí.
.
Este progressivo desenvolvimento líquido
teve como consequência
o aparecimento de poderosas civilizações marítimas,
que se desenvolveram de tal maneira que nos puseram
no brilhante estado em que nos encontramos.
.
É o que fazem as invenções.
.
No entanto, e mesmo com a actual abundância,
não devemos abusar, dada a tremenda
explosão demográfica que se está registando.
.
Parece-nos mais prudente beber gin. Sempre.

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