O Cânone
Autoria: António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen
Tinta-da-China e Fundação Cupertino de Miranda
Não há consenso sobre os nossos autores indispensáveis. Basta olhar para os sucessivos programas escolares e vendas de livros para perceber a desorientação geral. Perdemos a “bússola” no final da leitura da A História da Literatura Portuguesa de Óscar Lopes e António José Saraiva, mas desengane-se quem pensa que a reencontraremos num livro com o pomposo e categórico título “O Cânone”.
O livro tem 14 entradas dedicadas a diversos tópicos, que podem corresponder a períodos (Lírica Medieval, Barroco ou Renascimento), mas também a géneros (Memórias) ou revistas (Orpheu e presença), recolhe 51 ensaios sobre 49 escritores portugueses (Camões e Pessoa tiveram direito privilégios: têm dois) e uma breve introdução dos editores — António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen — absolutamente essencial: este “é um livro de crítica literária” e “não vale a pena procurar nele o cânone da literatura portuguesa”.
Ponto essencial: não é o livro que mais interessa, mas a sua ressonância. Por isso, a escolha dos ensaios, alguns argumentativos e de leitura agradável, mas não necessariamente convincentes enquanto justificação da canonização do autor em causa, outros a descreverem amplamente a obra, mas não propriamente um argumento. Em todos, pelo menos a tentativa, uma demonstração em ato da importância daqueles autores, evitando hierarquias de valor (para isso temos Sena). A ideia de declarar preferências é-lhe reprovável por extinguir a pulsão crítica, a capacidade de prestar atenção, de fazer comparações, de usar argumentos. Talvez por isso o livro ordene escritores e tópicos por ordem alfabética e só no fim acrescente uma cronologia dos autores canonizados.
Para quem não concorda com nada disto, e ainda não se disse tudo que pode “enervar”, um ponto a favor: entre os autores há discórdias e profundas. Por exemplo, a ideia de que a história da literatura portuguesa tem um fio condutor. Para Feijó, sim, claro; para Tamen. não há maior disparate. A literatura portuguesa tende para um lado, diz um; para nenhum lado, diz o outro. E há omissões. Na apresentação d' O Cânone, António Feijó, respondendo à exclusão de Sophia, argumentou que um dos critérios de escolha privilegia autores que criam condições de expressão no interior da tradição literária. Este é, aliás, um ponto que aparece no ensaio sobre o cânone de Feijó. Muitos autores não têm nada que possa ser usado ulteriormente. Outros há que estão numa posição ingrata: o adquirido que a posteridade lhes deve, e que pode ter sido uma descoberta maior, tornou-se de tal modo corrente que foi esquecido, persistindo como truísmo ou lugar-comum.
Mais omissões? Por exemplo, Manuel António Pina e Fernando Assis Pacheco. O caminho escolhido pelo” O Cânone” foi Alexandre O’Neill. Joana Meirim usa um neologismo que o próprio poeta empregou para definir o seu projeto poético: “desimportantizar” e toda essa família, dos que não gostavam de se pôr em bicos de pés, apesar das diferenças, vem de O’Neill. Cabe aqui. É dele que vem o modo particular de autodepreciação, foi ele que introduziu a alteração na série.
Esta perspetiva, que implica privilegiar uma sequência de autores que trouxeram algo de novo a uma tradição literária, ajuda a explicar outras exclusões de que se esperam escândalos. Deixa de fora, também, Cardoso Pires, mas revaloriza Florbela e ressuscita Júlio Dinis e Raul Brandão - descartando, no entanto, Húmus, uma obra falhada de “centenas de páginas tediosas e irregulares”. “O Cânone” reabilita, disso não se tenha dúvida, e podemos dar por assente, uma certa linhagem da modernidade literária portuguesa da qual Raul Brandão, Pascoaes ou Régio são marcos relevantes.
Vale muito a pena ler o ensaio do Abel Barros Baptista sobre o Júlio Dinis – é que normalmente fala-se da passagem do Júlio Dinis ao Eça, do romantismo ao realismo e ele instabiliza essa cronologia…. e depois avançar para Camões e João Figueiredo, que considera o óbvio, que simplesmente o canonizado não é lido, e que todos assumimos que basta o nome “Camões” para se saber do que se está a falar . Os Lusíadas não é o poema de exaltação nacional que muita gente quis crer que fosse, mas uma crítica violentíssima às consequências nefastas da expansão. Vamos ler Camões como um homem moralmente decente, que percebia o que estava errado. A ideia não é nova e até aponta-se o primeiro a ver isso: Hélio Alves, autor de um livro seminal sobre a épica portuguesa do século XVI e outros importantes textos sobre o Renascimento. E talvez aqui esteja a melhor pista para compreender ao que vêm este livro. Como na intenção de Hélio Alves, um programa canónico de resgatar autores oprimidos. Do gigantismo de Camões a Jerónimo Corte-Real, autor de várias épicas, entre as quais o Naufrágio de Sepúlveda; do gigantismo de Ferreira de Castro - que Agustina Bessa-Luís e Mário Cesariny consideravam um nome maior da literatura portuguesa do século XX - a Júlio Dinis, Florbela, Régio e Torga. E o que dizer do privilégio do Camilo que vai deixar Eça um pouco embaciado? E se temos Feijó temos Pessoa a "farejar" como cão grande o Pascoaes e a ideia de que a presença de Whitman em Pessoa é menos decisiva do que a de Pascoaes. Sugere-se a leitura de “Verbo Escuro”, que Pascoaes publica em Março de 1914. Ali, muitos textos que são a descrição exata da heteronímia. Mas não é por aí que a relação se faz, ela faz-se porque Pessoa vê em Pascoaes uma poética que é também a sua na sua fase pré-heteronímia, logo, quando Pessoa está a atacar Pascoaes, está a atacar o que ele mesmo foi, antes da primavera de 1914 e do surgimento dos heterónimos.
A discussão sobre o grau de impulso canonizante é sempre sugerida com cautelas. Talvez melhor lhe assentasse este título, bem sei, nada comercial: Lista Argumentada Que Não Quer ser Regra Alguma ou o Anti-Cânone. Afinal, medir é sempre uma tarefa difícil. Fixemos a nossa atenção sobre a “altura” de Camilo Pessanha. Porque é tão “alto” com uma obra tão pequena? Uma parte disso deve-se, responde “O Cânone”, à estima que por ele tinha Fernando Pessoa e à propaganda que lhe fez. E a crítica aceitou. Eis uma pista severa: canónico porque a crítica em Portugal é de uma certa maneira. Tudo isto vai trazer bastante satisfação de leitura, sono, irritações e um caminho mais difícil para o “verdadeiro” cânone que queira vir aí.
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