quinta-feira, abril 20

Cada instante, a recomeçar-se



Quem o via pela primeira vez, cabelos curtos, olhos pequenos de criança e fato impecavelmente engomado parecia-lhe um banqueiro ou um diplomata. Era bem apresentado e extremamente reservado, educado e cortês. Nos anos 20, em Paris, Miró (Barcelona, 20 de abril de 1893 -- Palma de Maiorca, 25 de dezembro de 1983) dava-se mais com poetas do que com pintores o que foi determinante para compreender a necessária e lucrativa relação entre essas duas artes. Mas ao contrário de Picasso, que continuou a sua obra para o exterior, Miró preferiu sempre o silêncio e a sua "oficina". Não gostava de falar nem de ser o centro das atenções. Conta-se uma história que terá contribuído para essa sua natureza reservada. Nos primeiros tempos de Paris, em que se tornava muitas vezes alvo de chacota dos surrealistas por causa da sua timidez e dos seus modos conservadores, Max Ernst, seu colega de atelier, e outros artistas quase o enforcaram para que se pronunciasse sobre um tema qualquer. Com medo de morrer permaneceu como gostava, em silêncio. Por aqui também dá para entender que, se no surrealismo encontrou o que estava à procura, o que lhe interessou foi o processo, não o resultado. Avançou e fez o seu próprio movimento com uma linguagem simplificada, mas codificada, onde a mulher é símbolo da fertilidade, os pássaros animais de ligação entre céu e a terra e as estrelas importantes em cada constelação exibida, No pensamento visual, as sensações variam entre o táctil e o ótico e os processos de elaboração das suas obras são observados em detalhe. Muitos poetas tentaram explicá-lo, este consegui-o, parece, muito bem:

Miró sentia que a mão direita
Demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada

Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.

Pois que ela não pôde, ele pôs-se
desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.
A esquerda (senão é canhoto)
É mão sem habilidade:
Reaprende a cada linha,
Cada instante, a recomeçar-se.

("O Sim Contra o Sim", de João Cabral de Melo Neto)

Sem comentários:

Enviar um comentário